por Henrique Goldman
Trip #188

Goldman lembra da música ’Nosso estranho amor’, que embalou um pé na bunda inesquecível

Como disse o sábio ensaísta francês Michel de Montaigne, “nada melhor do que uma enorme vontade de esquecer para fixar uma lembrança intensamente na memória”. Pensando nisso ontem, depois de hesitar por alguns minutos, resolvi baixar “Nosso estranho amor” no iTunes. Há muito tempo não ouvia a canção e tive medo de que a voz do Caetano Veloso e da Marina cantando “ah, neguinha, deixa eu gostar de você” voltasse a despertar um vulcão adormecido há três décadas, me fazendo sentir de novo toda a dor que senti quando tomei aquele pé na bunda animal.

“Não quero sugar todo seu leite, não quero você enfeite do meu ser… Não importa com quem você se deite, que você se deleite seja com quem for…” – “Nosso estranho amor” era uma ode à relação aberta, uma incitação ao amor polígamo e generoso, livre de ciúmes – um ideal romântico pra quem tinha 18 anos e achava que era muito cabeça feita. Mas aquele primeiro amor veio provar que eu não estava minimamente à altura desse ideal. Eu era possessivo, ciumento e minha enorme carência afetiva sufocava a coitada da minha primeira namorada. Lamentavelmente eu estava muito mais para Lindomar Castilho – famoso cantor de boleros nos anos 70 que matou a esposa ao flagrá-la com o amante – do que para Caetano.

Hotelzinho vagabundo
“Nosso estranho amor” virou tema musical daquela primeira desilusão amorosa quando começou a tocar no rádio do táxi que me levava para casa depois de ter passado a noite inteira trepando com a melhor amiga dela num hotelzinho vagabundo perto da rua da Consolação. Tinha traído por desespero, porque sabia que ela estava cansada das minhas neuras e estava prestes a me dar um fora. Foi uma tentativa patética de fazê-la ficar com ciúmes e me querer de novo. No táxi, não via a hora de ligar pra ela contando tudo, para cutucar sua indiferença. É claro que minha confissão só precipitou um fim mais do que certo. Indiferente à ladainha de meus apelos e achando até graça das ameaças de suicídio, ela me pediu para desaparecer e me jogou num abismo de dor, vergonha e rancor.

Ontem, ao ouvir “Nosso estranho amor”, senti um carinho enorme pela dor evocada. Pior seria não conhecer aquela escuridão e não poder rir da própria fraqueza e idiotice. E, como o músico e ator Paulo Miklos me disse, parafraseando o sábio empresário Manuel Poladian: “Merdas cagadas não voltam ao cu!”.

 

*Henrique Goldman, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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