Esse make up arrastou-se por duas horas. Objetivo: transformar este repórter no personagem principal de Avatar, o militar que se torna defensor dos bichos-grilos Na’vi no filme de James Cameron, fazendo assim uma reflexão sobre a intromissão destrutiva do homem sobre a natureza. E lá estava este arauto da liberdade e da notícia pronto para expor sua pele azulada no marco zero da cidade de São Paulo. Sim leitores, na Praça da Sé.
Caminho pela praça em direção à majestosa catedral com sua arquitetura gótica e bizantina. Estou semicamuflado com um quimono, mas os adereços e a tinta azul chamam a atenção. Mico, roubada ou um eco moderno da mensagem de multiculturalismo? Para compor o Avatar da Sé, me utilizei de adornos pessoais como guias de candomblé e colares rudraksa, marca registrada do deus Shiva. A peruca mezzo rasta mezzo sadhu, por sua vez, não era de meu acervo. Completou meu visual um rabo azul comprido. Sinto o cheiro amargo da marvada pinga e observo um grupo de mendigos e maltrapilhos querendo se aproximar. A fragrância tóxica domina as beiradas.
A praça da Sé é um ponto de passagem diário para mais de 1,5 milhão de pessoas. Criaturas e seres humanos brotam de todos os lados e são engolidos pelo frenesi da massa humana em suas tarefas diárias. Nesse formigueiro incessante, a sujeira e o mau cheiro parecem não incomodar ninguém. Soldado da notícia e Avatar de expiação, sou guiado pelo mestre Calado para uma posição estratégica. O cenário é cinematográfico: ao fundo a catedral e, no meu raio de visão, a estátua de São Paulo e o vai e vem dos transeuntes.
KID VIAGRA
Subo no banquinho clássico das estátuas vivas e, num passe de mágica, incorporo o personagem. Sou castigado e batizado por nomes bizarros. “Quem é ele? É um índio, não é?”, pergunta um senhor de boné e camiseta do Corinthians. Outro me reconhece como “o cara que apresenta o [programa de TV] Manhã Maior”. “Mas esqueci o nome”, completa. No zum-zum-zum, outro sujeito grita: “Olha o Azulão, é o Kid Viagra”. Saio da minha concentração e caio na gargalhada junto com a turba.
Sigo as premissas das estátuas vivas: muita disposição, preparo físico e humildade. Estava entregue à situação, de braços abertos para a novidade. Sou invadido por uma imensidão de pensamentos nebulosos. A multidão quer participar. Uns pegam minhas tranças de Avatar “para fazer a conexão”. Outros mexem no meu rabo azul. Entre homens com placas de “Compra-se ouro” e churrasquinhos gregos, escuto vozes por todos os lados.
Uns pegam minhas tranças de Avatar “para fazer a conexão”. Outros mexem no meu rabo azul
Minha situação é bem diferente da do conflito em Pandora, terra dos Na’vi, em Avatar. No filme, os humanos querem por todos os meios sugar o precioso minério Unobtainium. É a clássica relação que se perpetua na história da humanidade: colonizador barbarizando colonizado. Na Sé, não existe alinhamento galáctico ou estudo antropológico a ser dissecado. Estamos ali para nos divertir. E, no fim, o que realmente ficou impregnado desta experiência foi a tinta azul que demorou dias para sair do meu corpo.