Pastelão de Horror

por Cirilo Dias

Conheça a sanguinolenta cena independente brasileira de filmes de horror e durma se puder

O sujeito acaba de ser expulso de casa. Arrasado depois de uma discussão com o pai alcoólatra, ele segue sem rumo pelas ruas escuras e ameaçadoras de São Paulo. Exausto, procura aconchego ao lado de uma fogueira feita por um morador de rua. É quando surge a frase que se tornou famosa entre os amantes de filmes Z de horror: “Quer ficar na rua mano? Então vai ter que me fazer um favor. Vai ter que me fazer uma chupetinha”.

Essa é apenas uma palhinha de Feto Morto, clássica aberração cinematográfica,  escrita e dirigida por Fernando Rick Guidable (autor de A verdadeira história do Ratos de Porão), e lançada pela Black Vomit Filmes. Rick é um dos diretores mais conhecidos da incrível cena de filmes bizarros e ultrabaratos que vem conquistando adeptos no Brasil. De uns anos para cá, é cada vez mais fácil encontrar DVDs escabrosos, recheados de tripas expostas, mutilações, sexo sádico, muito sangue e personagens surreais como o Monstro legume do espaço. “Meu primeiro trabalho foi em 2002, quando lançamos Rubão, o canibal. Juntamos um monte de amigos, todo mundo bebendo cerveja e fazendo aquela podreira [risos]”, Rick diz, enquanto seu celular guincha ao som da famosa trilha de Psicose.

Nos Estados Unidos a cultura de filmes de horror é estruturada e até lucrativa – a referência no assunto é a produtora Troma. Já no Brasil os cineastas desse gênero precisam trabalhar em grandes produções do cinema nacional para poder bancar suas divertidas e absurdas produções independentes.  Fernando Rick, por exemplo, trabalha na TV Cultura e já foi assistente em Garotas do ABC (Carlos Reichenbach) e nos seriados Turma do Gueto e Metamorfose (Rede Record). “Na verdade, o mercado para este tipo de filme está nascendo agora. Com a internet, todo mundo está tendo acesso, sabendo que existem títulos do gênero. Quando eu lancei Feto Morto, em 2003, não existiam festivais de cinema fantástico. Hoje tem vários, Mostra do Filme Livre no Rio de Janeiro, o Trash em Goiânia. A gente ganha merrecas ou bosta nenhuma, mas cada vez mais tem uma molecada fazendo filme”, explica Rick.

"Nós estamos empenhados em criar uma cultura de cinema fantástico, de horror e baixo orçamento aqui no Brasil, com produção legal, distribuição legal"

A opinião é compartilhada por Gurcius Gewdner, dono da Bulhorgia Filmes e um dos produtores mais ativos e empenhados da cena (produziu, entre outros, o inacreditável Mamilos em Chamas, filme erótico estrelado por dois coelhos mortos). “As pessoas acham que o que a gente faz é sem sentido, gratuito. Nós estamos empenhados em criar uma cultura de cinema fantástico, de horror e baixo orçamento aqui no Brasil, com produção legal, distribuição legal. Nossos filmes não vendem nas Lojas Americanas, o lance é gastar uma quantia X e depois recuperar essa quantia. Nossos filmes são baratos, custam em média uns 15 reais e você leva pra casa mais de quatro horas de porcaria [risos]. Sai mais barato do que fazer download. Sem contar que todo mundo que gosta deste gênero acaba se reunindo para produzir mais. Foi assim que comecei a trabalhar com o Peter Baiestorf”.

O ponto de encontro desses auto-intitulados humoristas é a lista de discussão Canibal Holocausto, responsável por reunir Fernando Rick, Gurcius Gewdner, o precursor das produções independentes Peter Baiestorf e o efeitista Kapel Furman, que coleciona em seu currículo produções mais ortodoxas como Bellini e a esfinge (2001), O Cheiro do ralo (2006), Corpo (2007),  FilmeFobia (2009) e o seriado 9mm: São Paulo.

Não fosse a criatividade de Kurman, os efeitos dos filmes estariam resumidos ao sangue bizarro inventado por Gurcius – uma mistura de terra vermelha, macarrão e catchup. “Eu me especializei em efeitos mais por necessidade. Foi um jeito de juntar artes plásticas com a faculdade de cinema, duas coisas que eu sempre gostei. Como na faculdade eu não podia trabalhar com o gênero do horror, fui fazendo vários curtas de pouco ou nenhum orçamento. Quando o filme é independente e você tem dificuldades de orçamento, alguns efeitos acabam saindo melhor que se você tivesse usado muita grana”.

Horror palmitense

 

Ele é considerado o precursor do cinema de horror e baixo orçamento, e foi citado por todos os entrevistados desta reportagem: “Quando o assunto é filme de horror, você tem que falar do Peter”. O catarinense Petter Baiestorf, 34, aproveita a calmaria de sua cidade natal, Palmitos (SC), para exercitar a arte do horror e ainda sobreviver disso. “Eu comecei a fazer filmes em 1992, com VHS ainda. Como eu era zineiro e ia a shows de hardcore e grindcore, pensei em fazer uma extensão em vídeo do meu zine. Hoje eu tiro uma grana boa só fazendo filmes de horror e dando palestras”, diz o proprietário da cultuada e bem sucedida Canibal Filmes, dona do premiado O Monstro Legume do Espaço, Criaturas Hediondas 1 e 2,  Vadias do Sexo Sangrento e Arrombada.

As evoluções e facilidades tecnológicas não interferiram no trabalho de Peter, que afirma ser possível fazer filme de qualquer jeito, com qualquer tecnologia e até sem grana alguma. “Hoje você consegue fazer filme com celular. O filme mais caro que eu fiz custou sei lá, 300 reais. O Zombio, que é o primeiro filme de zumbi brasileiro, eu fiz utilizando restos de outros filmes.”

A importância de Baiestorf para o cinema de horror nacional é tanta que rendeu uma retrospectiva de sua obra na 8a. Mostra do Filme Livre, em abril deste ano, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. “Hoje em dia já existe uma certa estrutura, uma preocupação grande em criar um comércio, uma cultura. Quando eu comecei, no início dos anos 90, era pura esculhambação. Acho que até hoje é” [risos], explica o inquieto e incansável produtor, que já prepara mais dois filmes para este ano.

Humoristas acima de tudo

Impossível passar ileso a tanta heresia, putaria e violência gratuita sem tentar imaginar o que se passa na cabeça desses produtores. “Na verdade a gente faz humor. Todo realizador de horror não se leva a sério [risos].O pessoal pensa que só porque usei dois coelhos mortos no filme eu sou uma pessoa desprezível. Tenho animal de estimação em casa, nunca machucaria um bicho. Para filmar tanta coisa negativa você tem que ser uma pessoa extremamente positiva.”, explica Gurcius Gewdner. Surpreendentemente, a música é a inspiração para os roteiros dos seus filmes. “Eu fiz o roteiro inteiro de Mamilos em chamas ouvindo Burt Bacharach. Cada música dele é inspiração para uns 10 roteiros”.

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A gente leva uma vida sem rotina, trampando com o que gosta, se divertindo, sem se levar a sério"

Até mesmo os acidentes reais acabam sendo motivo para piada, além de reforçar os laços de amizade. “Uma vez eu caí na besteira de chamar o [Fernando] Rick para ser meu assistente.E, do nada, o cara vira e pergunta se poderia dar um tiro. Só que ao invés de sacar a arma e atirar para a janela, ele mirou no meu rosto e atirou. O festim é seguro a uma distância de três metros e não cinco centímetros. Fiquei com o rosto parecendo o do Duas Caras”, revela Kapel Kurman. “Eu me lembro disso. Nunca mais o Kapel me chamou pra ser assistente, mas nós somos amigos até hoje. Ele faz os efeitos dos meus filmes. Só não me deixa mais segurar uma arma num set de filmagem dele [risos]”, esclarece o maníaco atirador Fernando Rick; e aproveita para dar uma cutucada: “a regra do horror é não ter regra. A gente leva uma vida sem rotina, trampando com o que gosta, se divertindo, sem se levar a sério. Quem se leva a sério demais é aquele cara que fica o dia inteiro sentado num escritório, é casado com uma mulher gorda e tem três filhos”. Opinião reforçada por Baiestorf: “até hoje não me levo a sério. Não consigo levar nada na vida a sério, pra mim é tudo uma grande curtição. Por que o horror? Porque é divertido, porra!”.

E para quem pensa que tanta violência gera mais violência, Kapel dá o recado: “Todo mundo que curte filmes de horror é bem contra a violência, não briga, não enche a cara. Violento é essa cambada de mauricinho, que vai na balada e sai caçando encrenca. Somos muito bem resolvidos nos expressando nos filmes”.

Filmografia desta reportagem:

O Monstro Legume do Espaço 1 e 2 (Canibal Filmes)
3 Cortes (Black Vomit Filmes)
Feto Morto (Canibal Filmes)
Arrombada, vou mijar na porra do seu túmulo!!! (Canibal Filmes)
Mamilos em Chamas (Bulhorgia Produções)
O Triunvirato – Os curtas de Gurcius Gewdner ( Bulhorgia Produções)
Vadias do Sexo Sangrento (Canibal Filmes)
A Curtição do Avacalho (Canibal Filmes)

Onde encontrar os filmes:
Canibal Filmes
Black Vomit Filmes
Bulhorgia Produções
Troma

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