Papel de parede assassino

por Henrique Goldman
Trip #181

Pequenos exemplos na Europa mostram que medo e excesso de razão podem sair pela culatra

Uma adolescente de 15 anos de idade se oferece para trabalhar como voluntária em um jardim da infância em Kew Garden, zona oeste de Londres. Logo no primeiro dia ela aprende com a diretora da escolinha uma regra comum em quase todas as escolas britânicas: jamais, em nenhuma circunstância, um funcionário ou professor deve abraçar, beijar ou pegar uma criança no colo, pois tal gesto pode ser interpretado como um indício de pedofilia.

A Saatchi Collection, a mais renomada galeria de arte contemporânea no Reino Unido, foi forçada pela polícia a retirar duas fotografias de Tierney Gearon de uma exposição. Nas supostamente indecentes imagens, o filho de 6 anos e a filha de 4 anos da fotógrafa apareciam nus em uma praia.

Num set de filmagem, um diretor pede para um ator, que na cena está deitado dentro de uma banheira cheia de água, que acenda um cigarro. O assistente de direção interrompe o diretor dizendo que as normas de segurança impostas pela companhia de seguro não permitem que se acendam cigarros sem a presença de um bombeiro – mesmo dentro de uma banheira cheia de água. Para poder filmar, o diretor assina uma carta se responsabilizando pessoalmente por qualquer dano, moral ou material, que o cigarro aceso possa causar à equipe e ao elenco.

Em Wigan, norte da Inglaterra, um menino de 10 anos morre afogado em uma piscina, enquanto dois policiais assistem à cena de braços cruzados, alegando não poder fazer nada porque a Scotland Yard não permite que policiais arrisquem suas próprias vidas salvando vítimas de afogamento. Nesses casos só mesmo salva-vidas, devidamente treinados e cobertos por seguro, podem atuar.

Na entrada de um prédio no bairro de Maida Vale, uma placa adverte os transeuntes contra uma grande ameaça: “Atenção, papel de parede desgrudando!”. Será que o papel de parede ao se desgrudar pode atacar os moradores? E, nesse trágico evento, quais seriam as precauções a serem tomadas pelo público? No parque em frente uma outra razão para agir com toda a cautela: “Perigo, chão sujo de lama!”. Melhor avisar, pois se alguém sujar os sapatos e processar a administração do parque pode-se pelo menos alegar que a tragédia não ocorreu por falta de aviso.

Regras absurdas
Em pequenos e grandes gestos se manifesta a lógica paranoica de uma Europa mimada e preguiçosa, que tem muito tempo livre para pensar em “worst case scenarios”, nos piores dos casos. O pavor não é só de grandes hecatombes mas também de pequenos incômodos. Mais do que a morte, teme-se a própria vida.
Quando vemos regras absurdas seguidas sem questionamento entendemos melhor o funcionamento de campos de extermínio. Como disse o grande dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, “louco não é aquele que perdeu a razão, mas aquele que perdeu tudo, menos a razão”.

*Henrique Goldman, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br.

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