Pai, anti-herói

por Daniel Benevides

Colunista da Trip, André Caramuru fala do livro autobiográfico que está publicando no site

Historiador formado na USP e surfista, além de colunista da Trip, André Caramuru Aubert, 47 anos, casado com Clélia, pai de Anna e Pedro, demorou três romances e 200 contos para encontrar sua voz ("a alma") na escrita. É assim que termina, livro inédito que está sendo publicado em capítulos no site, surgiu de uma coluna para a edição da revista sobre morte. No texto, agora tornado introdução do livro, André descreve a morte de seu pai - uma figura complexa, problemática - sem nenhum sentimentalismo, de forma crua e direta.

"Esse texto surgiu num vômito", revela na conversa que tivemos aqui mesmo na Trip, entre uma risada e outra. Caramuru, em seu jeito sereno, elegante, fala como escreve, com frases reflexivas, por vezes longas, mas ritmo ágil. Em certo sentido - e o livro deixa isso claro -, é alguém com  modo de pensar clássico (ou, digamos, profundo), que soube se adaptar à nova velocidade dos tempos.

Uma das que mais intrigam no livro é a desenvoltura com que você fala de aspectos não muito louváveis do seu pai e  que podem causar constrangimentos junto à sua família.
Essas coisas vêm amadurendo há bastante tempo na minha cabeça. É um processo longo. Primeiro tem o passado, que esse projeto recupera, de certa forma, e que foi desencadeado por esse período curto em que meu pai foi para minha casa para terminar seus dias.  Era claro para todo mundo que ele não sairia de lá. Era uma doença crônica, fibrose pulmonar, que estava na fase final. Os pulmões vão progressivamente enrigecendo e não existe cura. Tenho um palpite que está ligada à atividade dele (artista plástico) com esmalte, que é pó de vidro, que ele inalou por muitos anos sem proteção. Racionalmente, ele tinha consciência de que estava morrendo, mas emocionalmente ficava confuso e às vezes perguntava: "Será que poderei ir á praia de novo?"

A despeito das críticas a seu pai contidas no livro, você também demonstra grande admiração por sua inteligência e talento artístico.
É uma coisa engraçada. Esse amadurecimento todo do livro tem a ver com isso. Ele é um personagem interessante, e nenhum personagem interessante na literatura é plano, são todos contraditórios, com múltiplos aspectos. Falar mal simplesmente seria muito fácil. O desafio é encontrar um caminho no meio que é falar da pessoa em toda sua complexidade.

Imagino que esse trabalho tenha uma qualidade terapêutica pra você, uma forma de tentar entender seu pai; mas ao mesmo tempo é um meio de extravasar uma veleidade literária. Onde você se coloca entre esses dois polos?
Acho que é as duas coisas. Eu escrevo há bastante tempo e já tentei alguma ficção, mas sempre que tentei a literatura achei que faltou alma. E aqui, nesse caso, eu senti que eu tinha um tema e que aquilo tinha alma, porque não tinha jeito, não tinha saída.

Como foi o processo da escrita? Tratar um assunto tão emocionalmente ligado à sua história?
A introdução foi praticamente vomitada. Depois eu revisei bastante, mas sem mudar o espírito, o tom já estava ali, na primeira vez que foi pro papel. Eu tinha vários pedaços escritos, a partir de um ponto eu comecei a pensar e organizar prum livro. A estrutura foi pensada, o que não significa que não possa ser mudada. Mais pra frente, inclusive, vai ter um zigue-zague cronológico.

"Achei divertido usar uma ferramenta nova pra publicar do jeito antigo"

E essa ideia de publicar um romance online nos moldes dos antigos folhetins?
Achei divertido usar uma ferramenta nova pra publicar do jeito antigo. Não é o único caso, mas de qualquer maneira, achei que podia funcionar. Além do que, essas outras experiências, na maior parte dos casos, são livros que tratam de temas mais contemporâneos, falando de internet e tecnologia. Textos no twitter, por exemplo, falam do próprio twitter. e por aí vai. Nesse caso não, tem cara de livro mesmo. Pra ser sincero, não sei o que vai dar, mas é divertido.

O curioso é que tem algo da memorialística densa do Pedro Nava, que é bem distante do universo online.
Pedro Nava é essencial pra mim, li a obra dele de cabo a rabo, tem muito de inspiração do Nava na forma como foi pensado o livro, assim como de vários outros. O Borges falava que você constroi sua literatura a partir das leituras que faz.

O que motiva alguém a escrever um livro, especialmente quando o livro te deixa de certa maneira vulnerável, como nesse caso?

Você acaba escrevendo porque precisa escrever, é uma coisa visceral, sai de maneira verdadeira. A chance de ser interessante pra quem lê é maior, mas não é isSo o que move, é porque é necessário pra você. De novo Borges; ele dizia que é muito mais importante ler do que escrever. A gente não precisa realmente de novos lançamentos, mas de alguma maneira as pessoas continuam querendo coisas novas. Necessário não é, só pra mim.

Você pensa em lançar o livro em papel?
A vantagem do online é que é que prolonga a revisão, o texto pode ser trabalhado até ir pro papel.  Não tem nada petrificado, se houver comentários que possam levar a alteração, tudo bem. Minha mãe mesma ja´mandou um e-mail enorme com varias sugestões, que, se couber, vou botar.

Você ficou preocupado em ser fiel aos fatos?

Estou com enorme preocupação em ser fiel à minha memória dos fatos, à forma como me lembro das coisas.

Existe algum conflito entre seu trabalho e o ofício de escritor?
Minha atividade profissional é mais ligada a trabalho com tecnologia, não existe coinflito. Desde que deixei a vida acadêmica, escrevo porque gosto, se é mais ficção ou não, não é importante pra mim. Costumo escrever á noite, todas as noites. Me faz um bem enorme. Se tudo der certo, esse livro vai me trazer a parte que faltava, que era botar alma na ficção.

As novas tecnologias mudaram a forma de escrever?
Você tem uma tendência hoje a textos mais curtos, porque o tempo é mais fragmentado. O Twitter no século passado não faria sentido. Muito difícil hoje pegar um grande livro do século 19 e ler. Eu peguei muitas vezes o Proust e não consegui avançar. Mihas frases não são curtas, mas o ritmo é rápido - até tive de me conter.

Chegou a falar com seu pai sonbre o livro?
Eu conversei com ele na fase final sobre isso. Ele era inteligente intelectualmente, mas do ponto de vista emocional era um retardado,. Acho que ele respeitaria a obra, mas discodaria de tudo o que tá lá e daria várias explicações a seu favor.

Você conviveu durante três meses com a morte. O que isso te transformou?
Não sei te dizer. Posso dizer que, ao fim desses três meses eu não era a mesma pessoa. A gente tem de aproveitar cada momento da vida. É facil falar, mas na prática a gente não consegue fazer. A gente não tem tempo a perder. De vez em quando eu lembro disso.

Vai lá: https://revistatrip.uol.com.br/blogs/caramuru/

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