Depois de séculos preocupada com a alma, agora a humanidade está obcecada com os corpos
Depois de séculos preocupada com a alma, uma herança grega, agora a humanidade está obcecada em turbinar o corpo – sem se dar conta de que um não existe sem o outro
Não por acaso, o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, catatau de 1.136 páginas do venerando filósofo francês André Lalande, que consulto para escrever esta coluna, dedica apenas um minúsculo verbete, 14 linhas, para “corpo”. E três generosas páginas para “alma”, páginas em que pululam personagens como Aristóteles, Epicuro, Tertuliano, Descartes, Platão, Berkeley e Diógenes Laércio. Pois somos gregos; somos, querendo ou não, herdeiros deles, do modo de pensar deles. A Igreja católica, para construir um ideário que convencesse os céticos, foi obrigada, com (São) Tomás de Aquino e (Santo) Agostinho, a mesclar a mágica e louca irracionalidade das escrituras com a lógica implacável dos aristotélicos. Como somos gregos, nos acostumamos a separar “corpo” de “alma”, dando status de nobreza à alma e de pobreza ao corpo, como se essa separação, essa hierarquia fossem naturais. Não são.
Para os pós-gregos, fôssemos cristãos, judeus ou muçulmanos, a alma sempre teve um status superior, sobrevivendo ao corpo (mesmo quando este, carregado de explosivos, explode) e, eventualmente, herdando paraísos (com ou sem as 72 virgens), purgatórios e infernos ou até reencarnando em novos corpos. De qualquer forma, essa polêmica de corpo versus alma tem origem no simples fato de que a grande maldição humana é nossa necessidade (e capacidade) de pensar sobre a origem e, principalmente, o fim. Nenhum outro animal fica elucubrando sobre o fim. Se você é um peixe e um peixe maior vem te comer, você tenta escapar. Mas não passa as horas vagas pensando no que vai acontecer se, e quando, o peixão te alcançar. Já o Homo “centro do universo” sapiens não apenas pensa, não se conforma. Como é que eu, tão bacana, charmoso e sofisticado, vou morrer? A luz vai simplesmente se apagar? Ah, não! Pode dar trabalho, custar dinheiro e sacrifícios, mas vou inventar Deus, vida pós-morte e ainda gerar empregos para rabinos e pastores. Foi assim que fizemos a alma, sempre fresquinha, sobreviver aos corpos cada dia mais velhos, fracos, enrugados e nojentos.
Corpos enciborgados
Corta para hoje. Religião não cola mais. No ocidente, muita gente ainda vai aos templos. Mas quantos acreditam mesmo naquilo tudo? Nos rituais? Aposto que muito poucos. A maioria vai por hábito, comodismo ou por um sentimento de “na dúvida, deixa eu me garantir”. Então, se a ideia da vida eterna não convence, a obsessão pelo corpo, em oposição à alma, cresce. Se você não é mesmo imortal, vai tratar de prolongar a vida, começando pela adolescência, que agora vai até os 30 e poucos, e evitar o quanto puder a velhice, antes respeitável e agora desprezível. Será preciso então se cuidar, fazer esporte, se alimentar bem? Sim, mas você pode se agarrar na tecnomedicina, que promete para breve uma quase infinita sobrevida aos corpos, enciborgados pela troca de peças defeituosas por outras, novas, eletrônicas, silicônicas ou “celulastroncamente” criadas.
Que tal, por exemplo, trocar suas lentas pernas por um par de Nike Leg Runners, mais fashion e adequadas às demandas atuais? Ou seus olhos cansados por Oakley SightSeekers, com cor customizável e visão noturna? E, quando chegarmos a esse ponto, dê-se o braço a torcer, o que fará falta será um pouquinho de Aristóteles, de Grécia, de alma. Pois será que não estaremos tentando, no fim das contas, basicamente prolongar a vida besta, vazia e consumista dos nossos corpos artificialmente excitados, bronzeados e bem torneados destes tempos contemporâneos?
*André Caramuru Aubert, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br