Onde vamos parar?

por Nina Lemos
Trip #171

Passamos dois dias no mais caro ”centro para a maturidade” de São Paulo para tentar responder algumas destas questões

No hall de entrada, decorado pelo arquiteto das estrelas Sig Bergamim, um carrinho de bagagens dourado, daqueles que existem em hotéis de luxo, está encostado em uma cadeira de rodas. Os dois objetos, colocados ao lado do elevador, mostram exatamente onde estamos entrando: em um asilo chique. Tão chique que não se chama asilo. Na verdade, é “um centro de convivência para a maturidade”. Um lugar de elite, com mensalidades que podem chegar a R$ 15.000, situado estrategicamente no bairro nobre do Morumbi, em São Paulo.

Trata-se do Hiléa, empreendimento inaugurado em dezembro de 2007 para abrigar pessoas maduras (palavras como velhinho e idoso não são bem-vindas por ali). Alguns dos hóspedes vão até lá para morar, outros para se recuperar de alguma cirurgia. E ainda existem aqueles que de tão doentes nem saem da cama. Mas o Hiléa não é um asilo, lembre-se: é um local de convivência. E, vamos repetir muitas vezes ao longo deste texto, é um empreendimento “de luxo”.

A reportagem da Trip passou 24 horas seguidas – incluindo uma noite dormida em uma cama de hospital – dentro do prédio, que tem dez andares. No primeiro subsolo, há uma piscina aquecida com rampa especial para a entrada de cadeiras de rodas (outra palavra que vamos repetir muitas vezes neste texto). No segundo subsolo, há uma praça, que não é uma praça, já que fica fechada dentro de um prédio. Mas, se uma praça de alimentação de shopping center é uma praça, aquele lugar talvez seja uma praça. E esse tipo de dúvida também vai se repetir ao longo deste texto.

Trata-se de um simulacro de um centrinho de cidade de antigamente. Há uma falsa loja com um letreiro onde está escrito “tecidos” na frente, uma falsa biblioteca e uma barbearia que funciona de verdade. E também uma lanchonete estilo anos 50 de onde não saem milk-shakes ou batatas fritas, mas água de um bebedouro asséptico, daqueles de hospital. Ali existe um cinema, que passa, na maioria das vezes, filmes clássicos. Na praça há um banco como aqueles de antigamente. E também uma luminária que imita as antigas. Em um desses bancos, há um senhor de terno dormindo. Em outra mesa, dois senhores e uma terapeuta brincam de jogo da memória. “Doutor, tente se lembrar que bicho é esse.” Um aparelho de som toca “Hey Jude”, em versão instrumental, bem baixinho. Nessa praça não há riso, nem alegria nem criança brincando. O relógio, também típico, marca 15h. É dia 11 de setembro de 2008, uma quinta-feira de sol.

DIABÉTICO TAMBÉM É GENTE
No terceiro andar, há outra praça. Uma senhora elegante passeia mal-humorada de cadeira de rodas, enquanto sua acompanhante tenta animá-la. “Vamos colher pitangas?” “Eu odeio pitangas”, diz a senhora. Nessa praça, há mais lembranças artificiais, como o cheiro de manacás, o aroma da fruta. Tudo para que os hóspedes (palavra mais usada que pacientes) possam lembrar-se do passado, algo importante para ativar a memória, como explica Luana de Alencar, 35 anos, diretora de comunicação do centro e uma das arquitetas do projeto. “Já está provado que o olfato é importante para ativar o cérebro, por isso chamamos esse espaço de jardim terapêutico.”

Nesse mesmo andar, há um refeitório. Na hora do almoço, o movimento é grande. Senhoras em cadeiras de rodas comem refeições com nomes finos, como papelotes, fraldinhas, servidos com molhos exóticos, como o de manga, em pratos de plástico. Não existe riso na hora do almoço. Nem muita conversa. Há um pouco de reclamação, já que alguns pacientes são obrigados a comer dietas específicas e não gostam muito disso. E quem gosta? Ainda no terceiro andar há um senhor que adora chocolate. Ele sai, compra vários e os distribui para as amigas. Os chocolates de seu Alysio Wilson, 72 anos, dois derrames, funcionário público aposentado, ocupam toda uma cama de seu quarto. “Mas o senhor também distribui chocolate para quem não pode?” “Ah, diabético também é gente”, ele diz. E escolhe dois tipos diferentes de chocolate para presentear a reportagem da Trip. E também aproveita para mostrar seu teclado. Sim, um teclado de verdade, mas que toca sozinho. São cerca de quatro da tarde. Ele aperta um botão errado, e uma música natalina ecoa pelo terceiro andar do prédio.

Dona Aida Miezza, de 91 anos, é uma das amigas de seu Alysio. E também uma felizarda. Diz orgulhosa que passa um tempo no centro para se recuperar de uma cirurgia no fêmur, mas logo vai voltar para casa. “Eu ainda tenho marido. Somos casados há mais de 60 anos, olha só.” Com as unhas pintadas de vermelho – ela aproveitou a manicure que vai duas vezes por semana ao centro –, dona Aida diverte os amigos ao falar sua frase preferida: “Loucura, loucura, loucura”. E não reclama de nada. “Estou muito feliz. Essa temporada aqui está sendo boa. É a vida. Fazer o quê?”

Nos quartos do asilo, onde dormem pessoas como seu Alysio e dona Aida, há camas hospitalares disfarçadas de camas normais. E também um quadro, em cima da cama. Atrás desse quadro ficam equipamentos hospitalares, como oxigênio e espaço para soro. Na frente da cama, há uma TV moderna, de tela plana.

BAILE DA SAUDADE
Célia Moreira, 84 anos, não tem a mesma sorte de dona Aida. Estamos de novo no subsolo, naquele lugar onde há uma praça que não é uma praça. Ela está sentada com outros hóspedes e uma terapeuta fazendo uma atividade ocupacional. “O que está escrito na sua tatuagem?”, pergunta para a repórter. “Meu coração está cheio.” “Isso significa que o coração dela está cheio de alegria, de amor”, explica uma terapeuta ocupacional, que faz cara feia para a repórter quando ela solta: “Ah, e às vezes o meu coração está cheio de tristeza também”. “A tristeza a gente deixa para lá, num canto”, diz prontamente a terapeuta, como se estivéssemos entrando em um terreno proibido. Mas dona Célia não dá ouvidos para ela. Olha nos olhos e responde de pronto. “O meu coração está cheio de saudades.” Dona Célia tem uma carteira. E dentro dessa carteira há uma foto de seu marido, que morreu há seis anos. Ela mostra a foto 3x4. “Ele era bonito, não?” Ela só fala do marido. Sem parar.

Quase na mesma hora, um senhor de terno passa pela praça falando para ninguém ouvir e diz, apontando para o fotógrafo desta reportagem: “Eu não tenho medo de morrer nunca! Ele está no paraíso. É jovem. É boa praça”.

No térreo, existe um restaurante com garfo e faca de verdade. É ali que seu Alysio prefere almoçar. Sozinho. “Aqui é melhor porque aparecem novidades, como vocês.” Seu Alysio tem um filho, que aparece de tarde para visitá-lo. “A gente faz tudo o que é errado. Vamos tomar chope e comer bolinho de bacalhau”, diz Alexandre, o filho de seu Alysio. Os dois saem animados do restaurante. Seu Alysio tem sorte.

Cada dia o centro tem uma programação diferente. A lista de atividades é distribuída no quarto dos hóspedes como nos mais chiques resorts. Nos dois dias em que a Trip se hospedou no local, as atividades eram as seguintes: na quinta-feira, jogos e alongamento pela manhã e, de tarde, acompanhamento terapêutico ao shopping, atividade física e happy hour com música ao vivo. Na sexta-feira, a lista era ainda mais extensa. Havia jogos recreativos e bingo durante a tarde.

Na hora do passeio para o shopping Jardim Sul, que fica do outro lado da rua, uns cinco senhores e senhoras se reúnem para andar até lá com acompanhantes. “Vai ser bom, o senhor vai ver lojas”, diz uma delas. “Mas eu não gosto de lojas”, responde um senhor bem vestido.

HAPPY HOUR
No tal restaurante onde seu Alysio almoça e a comida é servida em pratos e copos de verdade e finos, duas vezes por semana acontece um happy hour. São sete da noite, e o movimento de senhoras e cadeiras de rodas aumenta. Uma cantora entoa clássicos da bossa nova. No fim de cada música, é aplaudida. Dona Aida e suas amigas sentam juntas, mas outra paciente (os filhos de algumas delas não autorizaram que seus nomes ou suas fotos fossem publicados na revista, à revelia dos fotografados, que, na maioria dos casos, posaram animadamente e gostaram de ser entrevistados) prefere ficar sozinha com sua acompanhante e com a prima que apareceu para visitá-la. “Não tenho nada para conversar com essas pessoas daqui. É todo mundo gagá.”

Na hora de jantar, os pratos de louça são trocados pelos de plástico, em alguns casos. Uma das senhoras reclama. Queria a comida da amiga do lado. A fonoaudióloga Kátia Freire explica calmamente que a dieta de cada uma é diferente, pois é feita por uma nutricionista.

Nem todos os pacientes puderam descer para aproveitar o happy hour. Isso porque no centro existem outros andares. Como o nono. “Onde ficam as pessoas com problemas de locomoção”, dizem uns. “Os casos de demência”, solta uma funcionária. O movimento é animado no andar na quinta-feira de noite. Um senhor de terno e gravata anda de um lado para o outro, enfermeiras passam toda hora. E do fim do corredor vem um barulho de televisão.

Pela porta entreaberta dá para perceber que lá dentro existe uma senhora fina. Ela está sentada em seus aposentos (uma sala e um quarto), tomando uma taça de vinho do Porto e fumando um cigarro. A sala é cheia de fotografias antigas, e ela usa uma camisola de seda. É uma senhora bonita, com ares de diva e nem um pouco a fim de conversar. “Fazer amigos aqui? Eu não. Nunca fui gregária. Não tenho tempo para perder, não converso com qualquer um.” Ela só se anima a falar quando o assunto é nutrição: é cientista e trabalhou muitos anos como dietista. É tocar no assunto para seus olhos brilharem. “Trabalhei muitos anos nessa área, mas se voltasse agora teria que aprender tudo de novo, tudo mudou, a ciência avançou.”

Ela pouco sai de seu quarto para participar das atividades da clínica. Não gosta. Não quer. Por isso, não contamos com a sua presença no grande evento programado para a manhã do dia 12 de setembro, uma sexta-feira de sol. Esse é o dia em que serão apresentadas no auditório as fotos da olimpíada realizada no centro, um evento que animou o lugar e que conferiu ao seu Alysio uma medalha de ouro. “Fizemos corrida de cadeira de rodas, corrida de 10 m, eles se animaram muito”, conta Luana. Antes de as fotos serem exibidas em um telão, uma terapeuta-animadora entra no auditório e distribui pandeiros. “Vamos lá, gente, um, dois, três.” Quem pode sentar nas cadeiras normais acompanha a coreografia de lá, animadamente. “Um, dois, três, vamos lá, pessoal.” Uma moça bonita, toda vestida de preto, aparece empurrando uma senhora em uma cadeira de rodas. “Essa é a minha filha”, ela diz para as amigas. “Muito bonita”, todas concordam. Mas ela não tem tempo de se orgulhar mais. A moça dá um beijo em sua bochecha e vai embora carregando sua bolsa de grife. É quase de tarde quando a reportagem da Trip, depois de 24 horas dentro do centro, vai embora também. Não dá coragem de se despedir de ninguém.

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