Herói na 2ª Guerra e surfista, Harry Gesner está animado para o que vier depois da morte
No telefone, a mãe de Harry Gesner foi honesta. Como uma notória médium espírita, disse ao filho que metafísicos vapores estavam emanando do corpo do pai dele – que, fraco, sem ar e com dores no peito, achava ser vítima de uma indigestão. Harry, realista, disse para a mãe chamar a ambulância. Entrou em seu Mercedes 190SL, comprado zero em 1957, e disparou de Los Angeles rumo ao norte da Califórnia, abusando do motor do esporte conversível.
Quando chegou ao hospital, encontrou seu pai na maca, sorrindo e fazendo piada com as enfermeiras. “Harry”, disse o velho, “chegou a minha hora.” E seu sorriso cresceu: “Estou animado para a próxima experiência.” A indigestão era na verdade um ataque cardíaco, e naquela mesma noite Gesner pai se foi deste plano. Harry conta o episódio como resposta à indelicada pergunta que lhe fiz. Como hoje, aos 84 anos, ele encara a ideia da morte? Ele conclui, “é com esse olhar que eu contemplo o fim desta experiência”.
O fato é que Harry começou suas conversas com o inevitável destino em 1944, ao ser avistado por um tanque alemão no fim da Segunda Guerra Mundial. Entrincheirado atrás de um muro, só ouviu o disparo e um estrondo que lhe fez voar e cair inconsciente. Abriu os olhos no hospital, e os médicos jogaram sobre ele outra bomba: suas pernas estavam gangrenando. A amputação, a esse ponto, era urgente. Harry, jovem recruta, simplesmente disse não.
Tinha 17 anos quando foi convocado para as linhas de frente na invasão à Alemanha por conta de seu currículo: hábil piloto de avião, exímio atirador e esquiador virtuoso. Era produto de uma família de artistas célebres, inventores de motores, armas e aviões, e esportistas. radicais. antes de o rótulo besta existir. Foi esse herdado e profundo senso de autossuficência que lhe fez recusar a mutilação iminente e começar a massagear as próprias pernas, agora negras de sangue seco e carne morta. “Eu sabia que massagem ajudaria pela minha experiência no esqui na neve. O dia todo eu apertava minha perna, fiz passar sangue pelos meu vasos capilares, por todo o tecido.” Seis meses depois já podia andar sozinho. E os médicos não souberam o que dizer.
Voltou para casa com o corpo inteiro, mas a mente em pedaços. Os horrores da guerra, os tiros que acertou em rapazes como ele, os amigos que viu morrer ao seu lado, a insânia da bomba atômica aliada e da carnificina do Eixo não deixavam Harry confortável na santa paz da universidade.
Marlon Brando e surf
Estudava para ser um arquiteto, até que algo aconteceu: Frank Lloyd Wright, o mais importante arquiteto americano do século 20, viu desenhos de Gesner e quis tê-lo como pupilo. O que era o sonho de 11 entre dez estudantes na prancheta foi a gota-d’água para Harry. “Eu senti que aquilo não era para mim. A guerra me afetou demais, não dava para eu entrar no sistema depois de ver tanta desgraça. Senti que precisava achar meu próprio caminho.”
Abandonou as aulas e Frank Lloyd Wright para arrumar empregos em oficinas de carpintaria e construção. Como seus familiares provaram em gerações consecutivas, os genes dos Gesner funcionam melhor pelo autodidatismo. “Em dez anos”, fez a promessa, “se eu não for um arquiteto bem-sucedido. largo a profissão.” Em cinco primaveras era um requisitado e reconhecido inovador. Desenhou casas premiadas, serviu de declarada inspiração para projetos pelo mundo, construiu uma casa para Marlon Brando, recebeu (sem pedir) um diploma de arquitetura sem nunca ter voltado à escola. Dos anos 50 para cá ergueu casas que definiram muito da paisagem dos anos de ouro de ocupação do litoral de Los Angeles. Dos anos 50 para cá também reconstruiu sua paz interior no mesmo mar que podia ser visto das varandas que projetou. “Até hoje é assim”, ele explica, “qualquer angústia ou medo eu resolvo no mar, em cima da prancha.”
Recusou a mutilação iminente e começou a massagear as próprias pernas, agora negras de sangue seco e carne morta
A casa em que Harry vive desde o começo dos anos 60 foi desenhada e construída, na raça, por ele mesmo. Uma espaçosa e envidraçada residência no extremo norte de Malibu. Da sala, uma comprida janela em arco escancara o Pacífico. Do jardim defronte ao lar desce uma escada que dá direto na areia de uma praia pequena e reservada. Quase todo o material que monta seu lar é reciclado. Madeiras de casas demolidas, pedras e lajotas de calçadas e muros perdidos na primeira metade do século 20. A guerra, o surf e seu caso de amor com a natureza fizeram dele um arquiteto. verde. muito antes de o rótulo besta existir. “Não precisei de ninguém para me explicar que precisamos cuidar do meio ambiente, produzir menos lixo, gastar menos energia, morar em casas integradas com a vida ao redor dela. pra mim sempre foi tão evidente que nunca decidi construir casas sustentáveis, entende? Era o caminho óbvio.”
Lixo e gasolina
Em cima da mesa da sala onde Harry está comendo um sanduíche de verduras e fatias de abacate estão rolos e rolos de projetos e esboços. Uma casa geodésica, totalmente fora da rede elétrica e hidráulica a ser erguida no coração perdulário de Malibu. Um telhado com curvas e encaixes para painéis solares. Um rabisco de uma prancha de surf, duas maçãs que ele mesmo plantou, duas cervejas geladas e um livro enorme com fotos do cosmos feitas pelo telescópio Hubble. Mordendo o sanduíche ele se debruça sobre o livro: “Olha isso. bilhões de galáxias. Cada pontinho desse é uma galáxia que tem bilhões de estrelas. Já imaginou quantos planetas tem?”, ele hesita e não prossegue. suspira com um sorriso conformado de quem sabe que milagres não se explicam. “Quando eu vejo isso tenho certeza de que estou em uma missão, sabe?”
Missão?
“É. De ajudar este planeta a evoluir. Fazer o que posso para ajudar.”
E o que tem feito ultimamente, Harry?
“Bom. desde os anos 60 eu estudo formas de produzir combustível a partir do lixo das cidades.”
Ele tira de uma pilha de papeis um desenho de uma usina que ele projetou no Estado do Kentucky. Caminhões de lixo entram, e tubos de ventilação, filtros e um esquema de armazenamento retêm todo gás emanado pela decomposição. Seu irmão, hábil bioquímico, desenvolve formas de tirar óleos, matéria sólida e gases combustíveis. Harry e outros Gesner querem resolver dois problemas de uma vez só: lixo e crise energética. “Essa causa poderia ter sido abraçada há muito tempo pelos governos americanos. Minha pesquisa foi abafada muitas vezes por políticos e gente do poder. Mas agora talvez a coisa vá.”
Ronald Reagan e Santos
bama o faz vibrar. O primeiro presidente desde Kennedy em que Harry tem alguma fé. “Eu conheci Ronald Reagan nos tempos de ator. A gente caçava junto aqui nos arredores e ele sempre chegava fantasiado com roupas ridículas, como as de pinturas de caçadas europeias. Ele foi um ator interpretando um presidente. Um dos homens mais burros que já conheci.”
Ele começa um longo questionário sobre o governo Lula e o etanol. Pergunta sobre Brasília e a delirante utopia moderna de nossa putrefata capital. E lamenta saber que nossa Petrobras achou enormes poços de petróleo na bacia de Santos: “Meu Deus, quando a gente vai entender de uma vez por todas que não dá para queimar gasolina?”.
Quem vê as fotos na parede de sua casa pode achar hiprocrisia a bravata. Harry em carros esporte, em aviões de acrobacias, em motocicletas possantes e outras máquinas que bebem sem moderação. Mas o mesmo Mercedes esporte que ele disparou pela Califórnia ao encontro de seu moribundo pai está hoje em uma oficina no Meio Oeste. Por coisa de US$ 30 mil vai ganhar um novo motor elétrico e se tornar possivelmente o mais antigo automóvel de emissão zero do mundo.
“Nunca vendi esse carro porque pararam de fazer coisas tão bonitas assim para dirigir. Eu poderia comprar um Tesla, ou um Volt, mas eles usam um pouco de gasolina e o desenho não tem graça nenhuma”, explica o autodidata que sente os efeitos do aquecimento global a metros de sua porta.
Cerveja para a mulher
A casa vizinha da sua, também um projeto seu defronte ao mar, está em reforma e Harry cuida da obra nas fundações. A razão é simples: o mar já avançou o suficiente para abalar as estruturas que ele supervisionou nos anos 50. “Essa nova vai durar mais 50 anos. Até o mar avançar em tudo e não ter mais jeito.” E suspira com um muxoxo inconformado de quem sabe que tragédias podem ser muito bem explicadas. Mas nem todos dão ouvidos. “Bom. sou otimista. Tenho que ser.” Tem que ser? “Claro, só esperando o melhor dá para melhorar alguma coisa”, diz enquanto enche um copo de cerveja para levar a sua mulher no andar de cima. Casamento de três filhos e 42 anos. Mas há cinco a senhora Gesner está de cama. Um tombo fraturou suas pernas. Por conta dos cigarros que fumou, Harry acredita, ela não se recuperou bem e está fraca demais para as escadas. Também depende de Harry o simpático labrador cego que precisa ser guiado pela casa e pelos passeios na areia.
"Conheci Ronald Reagan nos tempos de ator. A gente caçava junto aqui nos arredores e ele sempre chegava fantasiado com roupas ridículas”
O corpo ereto e saudável ele atribui ao surf. Aos 84 surfa quase todo dia em que as ondas lhe visitam em Malibu, munido de um capacete com um penacho. “Com mais de 25 anos, só um ser irracional não se exercita”, explica sua lógica. Mas de uns dias pra cá está parado. O motivo é uma pancada no joelho e uma lesão no crânio, que recentemente foi operado. Harry tomou tiro de tanque, escalou muitas montanhas, esquiou em barrancos de neve em que poucos se arriscam, pilotou toda máquina veloz que pôde encontrar e ainda o faz. Mas o acidente que quase lhe mandou pro lado de lá veio em circunstâncias nada glamorosas. Desenhando uma casa até a madrugada chegar, Harry cochilou e caiu da cadeira. Imagem que define bem quem é o sujeito que não considera remotamente a possibilidade da aposentadoria.
Como se precisasse, ele explica: “Meu pai passou muito tempo de sua vida tentando construir algum aparelho que pudesse provar a existência da alma. Ele nunca conseguiu, mas você não precisa de prova se tiver uma vida repleta”. Como um kamikaze em uma nobre missão, conclui: “Vou morrer trabalhando.” – dá uma pausa, se vira para ver o mar enquanto morde a maçã de seu jardim – “. e animado para ver o que vem depois”.