Sem aviso, entra em cena um neto - e nosso colunista tem que vestir o figurino de avô
Caro Paulo,
Estou virando avô. Preste atenção no gerúndio do "virando" porque essa é a realidade. Ainda não me acostumei com esse novo papel, pois de certa forma ele veio de graça. Isto é, eu fiz o filho, mas não fiz o neto. Ele veio ao mundo porque outras pessoas decidiram, não eu. E aí, quando alguém chega e diz, "E aí vovô!", eu olho em volta procurando um velhinho curvado de cabelos e barbas brancas com uma bengala nas mãos até descobrir que a conversa era comigo. E me assusto, porque não sou o que um dia imaginei o que seria ser avô. Em síntese, não me reconheço avô.
Apesar disso, eu olho para o Joaquim e me reconheço. Vejo que a minha história continua por ali, que tem uma ligação tão íntima quanto gratuita que o coloca no meu futuro do mesmo jeito que me joga no passado, me obrigando a rever o personagem que fui até agora, acrescentando um novo papel que preciso aprender. Quem é você, Ricardo? Que pergunta idiota aos 54 anos de idade! Ficaria melhor nos 21 anos do Pedro, meu caçula, ou até nos 29 do Tiago, pai do Joaquim.
Mas não; a verdade é que essa história de "quem sou eu"? não traz nada de novo. Isso é que os técnicos em vida chamam de "desenvolver-se". São os papéis que vão surgindo na medida em que o personagem vive. Afinal a gente não faz outra coisa na vida que não seja aprender um novo papel a cada passo que se dá, a cada pessoa que se conhece, a cada situação nova em que a gente se mete. Se a gente não trata a vida assim, ela fica chata, repetitiva, previsível, sem emoção. Ou melhor dizendo, a vida continua cheia de vida, a gente é que se torna repetitivo, chato e previsível.
Espetáculo do crescimento
Se é isso, por que será então que acho meio canseira essa história de me perguntar quem sou eu na pele de um vovô? Aliás, acabou de acontecer. Estou em Itamambuca, curtindo um gostoso fim de semana de inverno com o Tiago, o Joaquim, sua babá Lourdes, mais a avó do Joaquim, minha mulher, Lili. Estou aqui na varanda, de costas para a sala, concentrado, escrevendo a coluna no laptop, quando de repente ouço uma voz feminina comentando: "Olha o vovô trabalhando!...". Instintivamente, por um segundo olhei em volta procurando o vovô. Disfarcei a surpresa, virei para trás e vi a Lourdes com o Joaquim no colo. Ele é adorável e eu gosto de ser seu avô.
Então por que me incomoda essa história de papel imposto? Por que eu não me sinto avô e me surpreendo com o personagem estranho que se apossa de minha pessoa? Acho que é isso mesmo. Deve ser mesmo a experiência de perder o controle sobre a vida e de repente virar uma outra coisa sem saber exatamente o que é. Agora me lembro.
Quando fui pai pela primeira vez, a sensação foi a mesma: o nascimento de um filho te anuncia o fim da ilusão de que você comanda o espetáculo da vida. É um sentimento de ligação profundo e definitivo que te acorda e te dá a consciência de que a vida é muito mais rica e frágil do que a gente pode imaginar. Lembro claramente que, a cada filho que nascia, era mais controle que eu perdia e curiosamente mais aumentava a necessidade de eu confiar na vida. Talvez seja isso.
Nessa altura eu talvez esteja precisando é de perder totalmente a ilusão de que a gente controla alguma coisa sobre este planeta e reconhecer que é preciso confiar de verdade que a vida sabe o que faz. Talvez eu estivesse precisando de uma experiência amorosa radical assim para sentir a vida no seu melhor. Acho que é isso: o Joaquim sou eu mais longe de mim e do meu controle. Que Deus o abençoe. É isso. Deixa eu curtir o neto, que vim aqui para isso.
Fica com o abraço de aprendiz de avô, seu amigo saudoso,
Ricardo.