O escritor-presidiário reflete sobre si mesmo e sobre como a vida, em 30 anos de cadeia, o transformou
Quem sou eu, afinal de contas?
O tempo me risca de rugas, pintando a alma de uma cor suavemente acinzentada. Quase prata. De dentro dos meus 50 anos observo-me e me espanto com a calma com que me encaro. Considero que possuo um conteúdo, um recheio. Uma história para contar que, pelo menos, possui alguma substância. Eu a vivi.
Sou a somatória de todos os meus momentos bons e ruins. Não pense que só agredi ou somente promovi violências. Sim, eu as cometi, e me envergonho. Profundamente. Não justifico ou racionalizo. Apenas afirmo que aproveitei meus erros para construir acertos.
A vida, apesar de todos os meus erros, fluía. Precisei viver, mesmo preso e condenado a quase uma centena de anos de prisão. O sol arreganhou as pernas e exigiu que eu penetrasse vida adentro. Procurei, apesar de tudo, aproveitar o espaço que eu mesmo estreitei, da melhor maneira que pude.
Sentia-me sem esperanças ou chances. Eu já era, parecia. Mas não. Ainda estava vivo, ainda... E cada vez mais vivo, à medida que fui sofrendo e com isso aprendendo. Naturalmente, fui realizando uma releitura do mundo. A cultura criminal, da qual estava impregnado, foi se dissolvendo. Os livros sempre me salvaram, até de mim mesmo. Na curva do rosto da mulher amada, aprendi valores antigos e calmos, como a virada da noite ao morrer no dia.
Carpe diem
Esforcei-me por aproveitar meu tempo. Li e estudei o quanto pude. Escapei, aos poucos, do destino cruel que dormia ao longo de meus passos. Busquei a mim mesmo no vazio das noites insones. Construí um sonho, preenchi todos os espaços e esforcei-me ao máximo para realizá-lo. Ousei querer ser escritor. Das ilusões da realidade, construí a realidade da ilusão. Muitas vezes minha espada se fez pesada sob meus braços cansados. A consciência mordia como cão raivoso. Mas meu sonho era tão grande que se alongava para além de grades e muralhas. Engoli sombras para produzir minhas luzes.
Nada tenho a dizer contra a vida que tive. Foram 30 anos de prisão. Não há revolta em mim. Há amor. Há vontade de estar livre e esperança de construir a felicidade. Um otimismo temperado pela certeza de que não desperdicei e usei até sangrar. Claro que sofri a dor rolando a esmo, seca e dura, sem dó. E mesmo assim sempre soube que tudo dependia somente de mim mesmo. E que eu me tornaria aquilo que quisesse ser. A vontade sempre me pareceu soberana. Acima de todos os empecilhos, vida adentro e sonhos afora.
Há uma força estranha no ar. Sei que, apesar de mim mesmo, há alguma coisa que me coloca para a frente, qual lâmina cortante sem cabo. Foram tantas as vezes que escapei da tragédia e de situações piores que a morte, que não pode ser acaso. Minhas dores se transformaram em adornos, depois de longas convalescenças. Não me deturpei, não me corrompi. Sou desses que se importam, e não mais apenas um sobrevivente. Construí uma moral muito pessoal e aprendi a amar sem medida, quando fui amado pela vida, pela natureza e por uma grande mulher.
Respondo agora a pergunta inicial: sou a própria voracidade de viver, este ser que não cabe em si e se expande.