Homero Naldinho pode ser visto como louco, mas é um shaper que expressa sua liberdade
A intensidade do olhar. É isso. Procurando uma frase que pudesse descrever o que chama a atenção, num primeiro contato pessoal com Homero Naldinho, cheguei à conclusão de que nada seria mais adequado do que a intensidade do olhar. Até nosso encontro, em Santos, eu não o conhecia pessoalmente, embora já tivesse ouvido falar dele. Circulavam versões diferentes, como se não se referissem à mesma pessoa. Havia um Homero gênio, o cara que praticamente inventou a profissão de shaper no Brasil, ex-empresário que abriu caminhos, inovou, revolucionou, deixando gerações de seguidores e/ou imitadores no Brasil e no mundo. Havia um Homero exótico, ou mesmo louco, que fez, para surfar em Saquarema no começo dos anos 70, aquela prancha preta pintada como caixão com uma cruz em cima, que ficou famosa e virou ícone de uma época depois de sair numa foto na pioneira revista Brasil Surf. O mesmo Homero que mora no velho barco ancorado no canal de Bertioga e que, para se locomover, usa uma bicicleta que parece saída do desenho animado Corrida maluca.
A conversa que tivemos revelou um sujeito consciente do papel que já representou, mas nem um pouco disposto a sair de cena tão cedo. E a intensidade do olhar é seguida pela velocidade das palavras. Começa dizendo, para meu alívio, que foi com a minha cara, porque se não fosse não tinha papo. Em seguida, e sem muita ordem, ele fala de sua vida, do que já fez de certo e de errado, de relacionamentos passados, dos filhos, da viagem de bicicleta que fez até a Bahia, de amigos e de desafetos, que está voltando a fazer pranchas, que quer continuar inventando. Mas ele acredita que é hoje uma outra pessoa: se sente próximo a Deus, com quem discute, briga, concorda, discorda, argumenta. E crê ter uma missão, dada por Ele, de iluminar e salvar a tribo dos surfistas nessa reta final em que estamos, antes da destruição da Babilônia, do acerto de contas, do juízo final, do apocalipse. Sim, há um Homero que é profeta.
Revoluções por minuto
Carioca, filho de um funcionário do Cassino da Urca e de uma caiçara de Angra dos Reis, viveu no Rio até a proibição do jogo, em 1946. Depois disso a família se mudou para Santos. Ele estava destinado, de qualquer forma, a ficar perto do mar. Quando ninguém surfava, ele surfou. Como não havia pranchas, ele as fez. Quando os californianos ainda faziam pranchas com fundos imitando os de barcos, Homero passou a fazer os fundos flat, ou planos, e mais tarde esteve entre os pioneiros na adoção dos côncavos. Fundos flat e côncavos ainda são usados, em diferentes combinações, em todas as pranchas hoje em dia. Enquanto na Austrália e nos Estados Unidos ainda reinavam os longboards, Homero já fazia pranchinhas.
Homero praticamente inventou a profissão de shaper no brasil, deixando legiões de seguidores/imitadores no brasil e no mundo
Foi um dos primeiros no mundo, se não o primeiro, a experimentar as pranchas com duas quilhas, as biquilhas, que viriam a ser o padrão mundial antes da chegada das atuais triquilhas na década de 80. Com relação às quilhas, ele ainda não parou de inovar e vem buscando agora eliminá-las total ou parcialmente das pranchas: seu Jet System, um conjunto de buracos, na rabeta da prancha, que atuam como quilhas/estabilizadores, é uma solução elegante ainda em evolução.
Como blocos de poliuretano, no início quase um monopólio da Clark Foam, eram difíceis de conseguir, Homero desenvolveu e produziu blocos. Inovou em rabetas, experimentando formas que depois seriam comuns, como diamond, swallow e squash. Mais ainda, foi o primeiro shaper brasileiro a ter um esquema de produção em grande volume, chegando a entregar dez pranchas por dia. Em seus projetos mais recentes, além do Jet System, ele vem investindo em novos materiais, como o carbono, em busca de leveza e resistência. E, com tudo isso, talvez sua maior marca tenha sido deixada na memória de toda uma geração de surfistas: quem pegou onda nos anos 60 ou 70 no Brasil muito provavelmente usou, em algum momento, uma prancha feita por ele.
Eu sei que sou louco
Enquanto conversamos, na praia de José Menino, em Santos, junto ao Canal 1, está rolando o 2º Festival Pioneiros do Surf de Longboard, uma confraternização de velhos surfistas disputando baterias num mar, pena, de ondas pequenas e mexidas. Lá estão alguns dos veteranos sempre lembrados quando se conta a história do surf no Brasil, gente como Picuruta e Almir Salazar, John Wolthers, Bruzzi, Cisco Araña. Dia chuvoso, Homero, que seria o mais velho do campeonato, acordou tarde e perdeu sua bateria por W.O. “Mas não tenho que provar nada pra ninguém. Se as pessoas acham que tenho que surfar nessas condições para provar que sei surfar, azar o delas.”
Há alguns meses, um incêndio destruiu boa parte de seu barco/casa, inclusive causando queimaduras nele e em sua namorada. Mas ele continua morando lá, sem luz e sem geladeira, entre outros “sem”, de onde sai, todos os dias, faça chuva ou faça sol, para surfar em Santos ou Bertioga. Depois, costuma ir à igreja, onde toca violão e gaita. A cada dia, pelo menos 20 km são cobertos por Homero e sua bicicleta. O conforto material de que dispõe é mínimo, se é que a palavra “conforto” pode ser de alguma maneira aplicada a esse caso. Homero olha nos olhos, com aquele olhar de brilho intenso dos loucos, dos gênios ou dos profetas, e diz: “Eu sei que sou louco”. Uma loucura que fez com que não houvesse barreiras para a inovação, a criatividade, a busca de caminhos alternativos e radicalmente pessoais. Mas que também, por outro lado, impediu a obtenção daquelas comodidades convencionais que a maioria de nós busca, como segurança familiar e estabilidade financeira.
A loucura de Homero fez com que não houvesse barreiras para a inovação, mas impediu a obtenção de comodidades convencionais
Noé do canal de Bertioga
Quando foi que Homero mudou de shaper bem-sucedido para sujeito totalmente à margem do sistema? Há quem diga que houve uma grande encomenda, da Gledson, a forte marca de moda esportiva da década de 70, de 2.000 pranchas, e que os problemas para entregar o pedido no prazo teriam levado a um stress decisivo para a mudança de rumos. Difícil saber ao certo. A verdade é que, aos 65 anos, Homero tem uma forma física de dar inveja a muita gente com metade de sua idade, não parece abalado com a falta de conforto e diz que não mudaria sua vida por nada. Chamar de lar um velho barco parcialmente incendiado ancorado no canal de Bertioga, de onde se sai ou se chega remando uma velha prancha de windsurf, não é mesmo para qualquer um.
O jeito radicalmente outsider de Homero pode passar a impressão de que ele é desencanado e tranqüilo. Nada mais falso. Ele é esquentado, não foge de uma briga nem perdoa ofensas com facilidade. Porém, ele é o primeiro a admitir, já foi pior. Será que a idade o está mudando? Possivelmente sim. Ele se diz mais sereno, mais sábio e mais próximo de Deus – ele, que durante a maior parte da vida esteve longe das religiões, mudou para sempre sua visão de mundo, depois de quase perder um filho para a meningite. De qualquer forma, apesar de sempre tocar violão num templo católico em Santos, Homero Naldinho é iconoclasta demais para se encaixar numa religião estabelecida. E é daí que vem o profeta da tribo do surf.
A intensidade do olhar evidencia alguém que pode até estar “mais sereno”, mas segue vivendo em giro alto, fervilhando de idéias, planos e profecias. Da missão que afirma ter sido dada a ele por Jesus ele já reclamou, mas hoje aceita. Ele tem certeza de que muda para sempre a vida das pessoas que cruzam seu caminho. Crê que os surfistas podem ser salvos, pois são seres que têm mais facilidade para viver em comunhão com a natureza e dispensar o consumo excessivo, gente que precisa apenas da prancha, da bermuda e da parafina para ser feliz. Mas, como todos no mundo, os surfistas também precisam de um profeta, de um Noé que lhes abra as portas da arca. E foi exatamente por isso, ele acredita, que Deus mandou Homero Naldinho.
Enzo Ferrari do shape
Talvez por querer desfrutar, daqui em diante, de um pouco de justo e merecido conforto, ou talvez por achar que ainda é muito cedo para ser lembrado só como história, é que Homero Naldinho está voltando a fazer pranchas. Serão mais caras que as da concorrência. “Tenho esse direito. Sou artista, perfeccionista, faço sozinho do começo ao fim, do shape ao sand, e sou o Homero Naldinho.” Verdade. Quem comprar uma prancha de Homero não levará para casa “mais uma” prancha. Nem alguma coisa com qualidade questionável. São incontáveis as histórias de ele destruindo shapes quase finalizados que considerava, por algum motivo, insatisfatórios. Mal comparando, uma prancha assinada por Homero Naldinho deveria ter o valor proporcional ao de uma Ferrari construída, polida e assinada pelo comendador Enzo em pessoa.
Considerado uma lenda viva, Homero Naldinho está planejando ser no mundo, durante um bom tempo ainda, mais o lado “viva” do que o lado “lenda”. Ele merece. Com mais de seis décadas nas costas, ele é uma metamorfose ambulante que não quis se sentar no trono de um apartamento e esperar a morte chegar.
A odisséia de Homero
Nada melhor do que a perspectiva do tempo para colocar as coisas no devido lugar. Dar crédito a quem merece. O legado de Homero Naldinho para o surf brasileiro pode ser aquilatado sob um prisma mais profundo hoje em dia. Talvez as pranchas loucas que ele nos apresenta sejam consideradas no futuro visões de gênio, à frente de seu tempo. Vamos olhar para o passado para entender.
Homero foi um autodidata que sempre buscou inovações para facilitar o trabalho do shaper. Foi também um precursor, ao se tornar um dos primeiros a fabricar pranchas e blocos e a mexer com uma máquina de shape em todo o Brasil. No início dos anos 70, a fase mais turbulenta da evolução dos designs, fui testemunha de quão avançados eram seus protótipos, ao presenciar as peripécias do surfista santista Saulo Nunes nas ondas do Guarujá. Saulo era um fora de série que fazia manobras de total vanguarda para seu tempo. O veículo: as pranchas de Homero. Os surfistas do Guarujá (como eu), de estilo mais clássico, influência californiana e havaiana, não entendiam e não apreciavam muito bem as manobras quase inconcebíveis de Saulo. Hoje percebo que as evoluções futuristas que ele praticava nas ondas eram uma função direta das pranchas que Homero lhe proporcionava.
Outro exemplo marcante da importância de Homero foi o testemunho do americano Gary Linden, que no fim do século passado viria a se transformar num dos mais renomados shapers do planeta. Linden esteve no Brasil no início dos anos 70 e confessa que, além de ter aprendido muito num breve convívio com Homero, percebeu que ele tinha idéias e conceitos muito avançados ainda não praticados na América do Norte.
Pesquisando acontecimentos como esses, Alex Gutenberg, ao mergulhar fundo em informações antigas para escrever História do surf no Brasil, lançado pela editora Azul, em 1989, veio com o apelido de “Professor Pardal” para Homero. Seu exemplo de longevidade e criatividade deve ser motivo de inspiração para gerações e gerações.
(Reinaldo “Dragão” Andraus)