O maior ciclista do mundo

por Ricardo Calil
Trip #201

Conheça o brasileiro Kid Lima, presente no Guinness por pedalar a menor bicicleta do mundo

Você consegue enxergar a bicicleta na foto acima? Ela está logo abaixo do senhor de cabelo acaju, conhecido como Kid Lima. Com quatro recordes no Guinness Book por pedalar a menor bicicleta do mundo, o brasileiro é considerado um dos maiores equilibristas sobre duas rodas do mundo, mas foi esquecido em seu próprio país

Frank Sinatra já havia visto Ava Gardner, Marilyn Monroe e Lauren Bacall peladas. E visto Martin Luther King chorar como uma criança quando ele interpretou "Ol’ Man River", uma velha música sobre o racismo. E visto ainda 170 mil brasileiros cantando "My Way" em uníssono no Maracanã lotado. Mas, não, ele nunca havia visto nada como aquilo.

O ano era 1988. O local, o hotel Fointanebleau, de Miami. A ocasião, um evento para arrecadação de fundos ao Haiti, reunindo a nata do entretenimento mundial. E aquilo era um homem crescido pedalando uma bicicleta de 6 cm (você não leu errado: a bicicleta era menor que uma caixa de cigarros). Aquilo era o clímax da apresentação do artista brasileiro Kid Lima, mago das duas rodas.

"O Sinatra, o Michael Jackson, o Julio Iglesias estavam na plateia aplaudindo. Depois do show, o Sinatra veio falar comigo, disse que não conhecia nada parecido com o meu número. Foi uma emoção grande demais, a maior da minha carreira", conta Lima, por telefone, de sua casa em Las Vegas. E se Sinatra não conhecia nada parecido, com décadas de show business nas costas, é porque não havia mesmo nada parecido. E ainda não há. Lima entrou quatro vezes para o Guinness Book, o Livro dos recordes, como o homem que pedalou a menor bicicleta do mundo: começou com uma de 30 cm e chegou à atual de 6 cm – todas construídas pelo próprio artista.

E a única pessoa que parece capaz de derrubar o recorde é o próprio Lima. Aos 67 anos de idade, recuperando-se de uma operação para a retirada de duas hérnias umbilicais, ele conta que está treinando há quatro anos para pedalar uma bicicleta de 4 cm. "Ainda não encontrei o tempo de equilíbrio dela. É preciso muito treino para pegar o ritmo. Também demorei quatro anos até conseguir pedalar a de 6 cm" , diz.

NASCE UMA LENDA
Euclides Medeiros de Lima ganha a vida equilibrando-se sobre duas rodas há 53 anos. Nascido em Natal, filho do dono de uma oficina mecânica, sexto de nove irmãos, ele ia ver todas as companhias de circo que montavam suas lonas na cidade durante sua infância – e ficava especialmente fascinado com os números de bicicleta. Com as manhas aprendidas na oficina do pai, ele conseguia reproduzir truques difíceis – como desmontar partes da bicicleta enquanto pedalava até ficar numa roda só – em apresentações pelas avenidas de Natal.

Aos 13 anos, o autodidata Euclides mostrou as acrobacias que havia aprendido ao dono do famoso circo Tihany e foi convidado a se juntar à trupe. Escondido da família, ele viajou de ônibus até Fortaleza, para se encontrar com a companhia. Quando o pai descobriu, avisou o Juizado de Menores local, mandou o irmão mais velho buscá-lo e, na volta, lhe aplicou uma histórica surra. Ele disse que o filho só sairia de casa aos 18 anos, depois de completar ao menos o ensino secundário. Mas, um ano depois, Euclides convenceu a mãe a lhe dar o dinheiro de uma passagem de avião até o Rio de Janeiro, sem contar ao pai.

No dia em que chegou à então capital do país, com a bicicleta na bagagem, saiu em busca do palhaço Carequinha, que já era o maior nome do circo no país naquele 1958. Mostrou seu número ao ídolo e foi contratado na hora. Carequinha só fez uma observação: "Euclides não dá! De agora em diante, seu nome artístico vai ser Kid Lima". Em pouco tempo, Kid estava se apresentando no programa do Carequinha na TV e rodando o país com o circo do chefe. "Ele cuidava de mim como um filho", diz. Foi nessa época que ele desistiu de outra de suas vocações: a luta livre. Campeão nordestino ainda adolescente, ele chegou a lutar no Rio de Janeiro, mas a paixão pela bicicleta falou mais alto – e ele abriu caminho para o reinado do argentino Ted Boy Marino.

"Euclides não dá! De agora em diante, seu nome Será Kid Lima"

Depois da ligação com Carequinha, Kid passaria por outros circos célebres, como os de Jarbas Olimecha e Franz Tihany, e pelos programas de televisão do Arrelia, de Flávio Cavalcanti, Moacyr Franco, Hebe Camargo e outros. "Foi o Jarbas quem me ensinou que não bastava fazer meu número, eu tinha que saber me vestir, me dirigir ao público, tornar a apresentação mais atraente. Ele me falou, por exemplo, para colocar a bicicleta em cima do tamborete do elefante", conta Kid. "Ele já era um craque na bicicleta quando chegou ao Rio, mas parecia recémsaído da roça. Ele se apresentava com camiseta de time de futebol", lembra Luiz Olimecha, sobrinho de Jarbas e fundador da Escola Nacional de Circo.

Poucos meses depois do chegar ao Rio, Kid já voava para o exterior, com autorização dada por sua mãe, para uma apresentação em um cassino de Mar del Plata. Foi o início de uma longa e bem-sucedida carreira internacional, que passou por todos os países do América Latina e quase todos da Europa e da Ásia. E que incluiu 12 anos morando no Japão e longas temporadas em Las Vegas, com shows em grandes cassinos como o Caesar Palace, o MGM, o Tropicana. "Eu tenho carimbos de 162 países nos meus passaportes. E falo oito línguas, inclusive japonês", diz o orgulhoso Kid, que estudou só até a quinta série. "Eu me apresentei duas vezes no programa do Ed Sullivan [no qual os Beatles tocaram pela primeira vez no EUA]. Em Tóquio e Las Vegas, as pessoas me reconhecem na rua, pedem autógrafos."

A família de Euclides é igualmente internacional. Ele tem um filho japonês de 42 anos ("eu namorei uma japonesa que engravidou, ela fugiu para me encontrar na Indonésia, mas o pai mandou buscá-la e casar com um japonês; a última vez que vi o garoto foi em 2002") e uma filha americana de 30 anos ("a mãe era argentina e a menina nasceu em Acapulco; depois que a mãe morreu em um acidente de carro, ela veio morar comigo"). Hoje, Euclides está casado com uma tcheca e se divide entre sua casa em Las Vegas e uma mansão à beira da lagoa de Extremoz (RN), a 22 km de Natal.

Nos anos 60 e 70, Kid Lima já era considerado um dos maiores equilibristas em bicicleta do mundo, com inovações como um truque com a bike levantada sobre uma espécie de pedestal. Mas foi no início dos anos 80 que ele criou sua marca registrada: a pedalada na minibicicleta (para entender o tamanho da façanha, vale a pena ver este vídeo). No começo, a bike tinha 30 cm – o que já foi suficiente para o primeiro dos quatro registros no Guinness Book. Ao longo dos anos, o equipamento foi diminuindo de tamanho – na medida inversa em que crescia o sucesso do número. E Kid ainda o apimentava com um apelo irresistível: ele desafiava o público a pedalar na bicicleta por um prêmio que chegava a US$ 20 mil. "O cara sempre cai de bunda, e o público se caga de rir", conta, ainda se divertindo depois de 30 anos de truque.

RUMO AOS 4 CM
Kid Lima diz que não pretende se aposentar. Nunca. "O Carequinha trabalhou até um dia antes de morrer, com 92 anos. Eu não preciso mais trabalhar, já juntei meu dinheirinho. Faço pelo prazer e pelo desafio. Não gosto de ficar parado em casa, que nem um doente", diz o equilibrista, que costuma ganhar cerca de US$ 3 mil por semana em suas temporadas nos cassinos de Las Vegas.

O artista potiguar reconhece que foram as acrobacias na bicicleta – como levantar um homem nos braços enquanto pedala – que lhe causaram as hérnias umbilicais. Mas garante que o problema não irá encurtar sua carreira. Kid já tem contrato para se apresentar em Osaka, no Japão, agora em setembro. Dois meses depois da cirurgia, ele começa a retomar sua rotina de exercícios. Mas nada de ioga, pilates ou RPG. Ele faz o estilo old school: abdominais, flexões de braço e muitos pulos com uma perna só. O próximo desafio é mesmo pedalar a bicicleta de 4 cm. "Mais cedo ou mais tarde, eu sei que vou conseguir. Ainda estou em forma."

Provavelmente o Brasil nunca verá a façanha ao vivo. Há alguns anos, Kid Lima decidiu parar de se apresentar em seu país natal. "No Brasil, artista não ganha dinheiro, quem ganha é o empresário", afirma. E, depois de um contratempo ocorrido dois meses atrás, ele decidiu passar cada vez menos tempo por aqui. "Um sujeito de uns 30 anos parou o carro no meio da rua em Natal. Eu fui reclamar, e ele já saiu com um pedaço de ferro querendo me bater. Eu dominei o cara e lhe apliquei umas porradas. Mas minha mulher ficou louca, disse que não queria mais voltar no Brasil. Lá você tem medo de sair na rua e tomar um tiro por causa de uma briga de trânsito", diz Lima. Ele não usa a bicicleta como meio de transporte. "Eu pedalei muito quando era moleque e no Japão também, porque não tinha carro lá. E aí eu enjoei. Agora só no show. Mas acho ótima essa história de mais gente usando bicicleta no dia a dia, como fazem na Holanda, na Alemanha. Espero que pegue no Brasil também."

Com o afastamento de seu país natal, veio também o esquecimento. Consultadas pela Trip, duas das maiores especialistas em circo do Brasil – Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, e a diretora teatral Alice Viveiros de Castro – disseram não saber quem era Kid Lima.

O ex-trapezista Luiz Olimecha explica que o circo no Brasil enfrenta problema semelhante ao do futebol: a exportação de talentos. "Dos 35 artistas formado por ano na Escola Nacional de Circo, 30 vão trabalhar no exterior atrás de melhores oportunidades. Aqui o circo não tem valor nenhum. O circense ainda é tratado como cigano ou favelado." Mas, ao contrário de muitos colegas, Olimecha se recorda bem do herói nacional da bicicleta: "O Kid é conhecido no mundo inteiro. Ele foi pioneiro de muitas acrobacias que a molecada faz hoje, como essas com a bicicleta parada. Mas no Brasil as pessoas só lembram do que aparece na TV. Tem muito garoto que nunca ouvir falar em Tom Jobim. Nosso país arrebenta a memória."

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