Dez anos depois de sua morte, Sabotage ainda é o cara do rap nacional
Disco com inéditas, biografia, HQ, documentário, filme de ficção: dez anos depois de sua morte, Mauro Mateus dos Santos – para os amigos de infância, Maurinho; para todo o Brasil, Sabotage – ainda é o cara
"Na sua meninice, ele um dia me disse que chegava lá.
Olha aí! Olha aí! Olha aí, ai, o meu guri, olha aí..."
Mauro Mateus dos Santos, maestro da periferia, ator de cinema, traficante dos dois revólveres na cinta, namoradinho da Dalva, filho da guerreira dona Ivonete, devoto de Iemanjá e sobretudo um devoto do rap nascido na favela do Canão, zona sul de São Paulo, disse em sua última entrevista, publicada postumamente na Trip de março de 2003, que Chico Buarque poderia muito bem estar falando dele quando escreveu o samba “O meu guri”. “Aquilo era o meu retrato no morro”, contou Sabotage, ou simplesmente Maurinho, que se descrevia na entrevista como “o cara que olha nas bolinha dos zoio”.
Sabotage completaria 40 anos no dia 3 de abril, mas não chegou ao 30º aniversário. Na madrugada de 24 de janeiro de 2003, às 5h50, quatro tiros lhe atingiram boca, ouvido e coluna cervical. Dez anos após sua morte, o autor do icônico “Rap é compromisso” (2000) é tema de um documentário, uma biografia, um disco com músicas inéditas e um filme de ficção. O produtor Denis Feijão negocia ainda com a família levar a vida de Sabotage ao cinema, sob direção de Walter Carvalho. Enquanto filmava com Carvalho o documentário Raul – O início, o fim e o meio, sobre Raul Seixas, o produtor conheceu Wanderson “Sabotinha”, primogênito do rapper. Na mesma época, foi apresentado a Jonathan Azevedo, o Negueba, ator espichado do grupo de teatro Nós do Morro, que tinha um sonho: fazer o papel de Sabotage num filme. “Ele é muito igual, tem os cacoetes, faz rima”, afirma Feijão.
A produção ainda não confirma, mas chegou à família a informação de que a viúva, Dalva, poderá ser vivida por Mariana Ximenes (a atriz diz que não sabe de nada, mas “adoraria”). Ela, Sabotage e Paulo Miklos, do Titãs, estrearam no cinema juntos, com O invasor (2001), de Beto Brant. Sabotinha, hoje com 20 anos, diz que poderá interpretar o pai quando bem jovem, na época do tráfico. Em fase de pesquisa e roteirização, o filme de Walter Carvalho talvez ganhe estrutura narrativa semelhante à de I’m not there, cinebiografia em que vários atores se revezaram no papel de Bob Dylan. “Acho impossível ter uma ficção [convencional] de personagens como ele, como Raul, Cazuza ou Tim Maia”, diz Feijão.
Ele define Sabotage como “o nosso 2Pac”, em referência ao rapper americano Tupac Shakur, morto a tiros, em 1996. No documentário , que Feijão também ajuda a produzir, Sabotage se mostra um homem múltiplo. O cineasta Beto Brant, que o dirigiu, o alinha a Chico Science e Bob Marley. O amigo Rappin’ Hood compara: é o Garrincha do rap brasileiro. Para Alê de Maio, autor dos quadrinhos que estão nesta reportagem, era o Che Guevara das quebradas.
Diretor do documentário, Ivan Ferreira quer colocá-lo na praça até o fim do ano. Já são 11 anos rodando: Ivan tinha 20 anos e era, como se define, um “maloqueiro playboy de Perdizes” quando entrevistou Sabotage pela primeira vez. Agarrou o desafio de costurar as “várias histórias desencontradas” sobre o homem por trás do mito – de uma suposta “letra de amor” escrita para o colega Mauricio Manieri até histórias de tempos menos adocicados numa boca de drogas na Vila da Paz, favela onde Sabotage morou nos anos 90.
O álbum com 11 faixas inéditas tem produção de antigos parceiros: Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Rica Amabis, da banda Instituto. O disco, conta Tejo, “mostrará tudo o que ele é capaz de fazer”, o sincretismo musical que juntou o rap a gêneros como samba e rock. Já a biografia é assinada por Toni C., autor de O hip-hop está morto. Toni não conheceu seu biografado. Por pouco: o encontro aconteceria no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, onde o músico tinha compromisso naquele 24 de janeiro. Sabotage disse a amigos que pretendia estar de volta a São Paulo no dia seguinte, aniversário da cidade.
Há controvérsias
“Quando se trata de Sabotage, há muitas histórias mal contadas”, diz Toni. Segundo ele, por exemplo, diferente do que está cravado na Wikipédia e até em sua lápide, foi no dia 3 de abril, e não 13, que o filho de Júlio dos Alves Santos e Ivonete Mateus de Melo veio ao mundo. Aos 15 anos ele conheceu o pai, vulgo Julião Carroceiro, que às vezes aparecia bêbado. A mãe foi doméstica, costurou, passou. Fez de tudo um pouco para sustentar três filhos – o caçula, Maurinho, Deda, que se envolveu com o tráfico e morreu nos anos 90, e Paulinho, “sem saúde mental”, segundo Toni C. O barraco deles na favela do Canão não existe mais – a área, na avenida Jornalista Roberto Marinho, virou canteiro de obras do metrô. Crescer nessa quebrada formou o músico e o militante. Sabotage consagrou o lema “respeito é pra quem tem” em seu único disco, Rap é compromisso, lançado pelo selo Cosa Nostra, dos Racionais MC’s de Mano Brown. “Ele enxergava o rap como instrumento de mudança. Com o microfone na mão, a gente tem responsabilidade de levar nosso povo para coisas melhores. Povo preto, pobre, da periferia”, resume Rappin’ Hood.
Hoje, o Canão se restringe a poucas vilinhas, algo parecidas com a do seriado Chaves. Sabotage continua sendo “o cara” por lá. Seu rosto está grafitado num muro, e Tainá, jovem de 15 anos, carrega um pôster da irmã mais velha que exalta o “poeta, guerreiro e sobrevivente”. Rosângela dos Santos, 37, conheceu o menino no colégio. Lembra de um diálogo recorrente do colega, “corintiano roxo”, com uma professora “que pegava no pé dele”:
– Ô, Mauro! Mauroooo! Cadê sua lição?
– Tá aqui. Minha lição é minha música.
O aluno mostrava o caderno rabiscado com composições. Sabotage, que cursou o ensino fundamental, foi guardador de carros e feirante, falava em ser office-boy, mas entrou no tráfico mais ou menos na época em que a mulher, Maria Dalva, engravidou de Wanderson (as datas são incertas: o próprio Sabotage relatou à Trip que, aos 8 anos, já vendia droga). Antes disso, sem grana, Sabotage usava camisetas suas como fraldas para o bebê. De repente, fraldas descartáveis, leite em pó e outros “luxos” entraram na rotina. Opção que “ajudou a família”, diz o documentarista Ivan.
Mil grau
Mesmo com a nova atividade, que o levou a andar armado, não deixou a música de lado. Quando reencontrou Rappin’ Hood, camarada da zona sul com quem pegava metrô ao voltar do Clube da Cidade nos anos 80, deu seu número de bip (não tinha celular) e combinou de entregar fitas cassete com músicas suas. O material foi parar nas mãos do rapper Sandrão, do RZO. “Aquele moleque foi considerado ‘mil grau’. Era o momento dele”, diz Hood.
No começo dos anos 2000, o “mil grau” já pegava fogo: aparecia no Altas horas, da Globo, nos programas da MTV, no cinema – além de O invasor, fez Carandiru, de Hector Babenco, lançado meses após ele morrer. Sabotage, que chegou a passar pela antiga Febem e foi autuado duas vezes por porte de arma e tráfico, “nunca puxou cana”, diz Toni C. Mas sacava bem o Carandiru, onde tios e o irmão Deda ficaram presos. Numa cena antológica do filme, seu personagem beija a bunda de Rita Cadillac.
Segundo Rappin’Hood, pessoas “do movimento” estranharam o “Sabota” mainstream, fazendo show “em casa noturna de playboy”. Mas Sabotage transitava bem entre muitos meios e tinha amigos tão variados quanto Chorão, do Charlie Brown Jr., e os rapazes do Instituto. Hood e Sandrão chegaram a ir à boca de fumo para buscá-lo e falar com “o patrão”. O papel de Sabotage na boca, diz Rappin’, era o bê-á-bá: “Chegava a caranga: ‘Quantas vai, parceiro?’. E ele servia”. Até que a própria rapaziada do tráfico falou pros amigos: “Ele tem talento mesmo pra esse bagulho, tem mais é que cantar”.
Foi o que Sabotage fez até morrer. Gravou todos os dias daquela semana até ser alvejado na sexta-feira, na avenida Professor Abraão de Morais, no Jardim Saúde. Ia pegar um ônibus após deixar a “patroa” na concessionária na qual ela era auxiliar de cozinha. Morreu no hospital, cinco horas e meia depois. Essa história de amor, como tudo mais, começou no Canão. “Coisa de criança”, define Dalva. Aos 18 anos, a menina branca de cabelos claros reencontrou o namorado de infância. “A gente não chamava atenção pela cor, mas pelo cabelo espetado dele.” Tiveram dois filhos, Sabotinha e Tamires, de 18 anos. E há outra filha, hoje adolescente, que ele teve fora do casamento.
Duas coisas tiravam Sabotage do sério. “Quando tava com fome e quando ficava sem...”, diz Sabotinha, fazendo o gesto universal do “fumar um”. Ele conta que o pai também era chegado no vinho San Tomé, que lia muito (de jornal a dicionário) e escutava de tudo (de rap gringo a Sandy & Júnior). E que as trancinhas arrepiadas o obrigavam a dormir de bruços.
Em 13 de julho de 2010, um júri de quatro homens e três mulheres determinou que Sirlei Menezes da Silva era culpado pelo homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e impossibilidade de defesa) desse pai de família. A pena do réu, preso em 2004: 14 anos de prisão. Foi o último caso do promotor Carlos Talarico, hoje procurador da Justiça. “O processo indicava que, meses antes, ele estava com cada pé numa canoa: não sabia se a arte ia render ou se iria para a vida marginal.” Sabotage sabia que “tinha inimigos, de tretas antigas. Falava: ‘Se eu fizer sucesso, a inveja dos caras não vai deixar eu viver em paz’”, recorda Rappin’Hood, até hoje amigo da família que ainda mora no barraco de dois andares no Boqueirão, último endereço de Sabotage. “O sonho dele era sair da favela”, diz ele, que tem aconselhado os filhos do amigo a lutar por um bom acordo financeiro antes de dar OK à ficção que Walter Carvalho pretende rodar. “É real o bagulho. Não vem com caô, vem com contrato.”
Dalva ganha R$ 810 como auxiliar de limpeza numa filial do curso de línguas Fisk. Lembra de ter recebido só uma vez por direitos autorais do marido, pouco mais de R$ 2 mil. “Tá ruim ainda. Com fé em Deus, vai melhorar.”