por Millos Kaiser
Trip #194

João Gonçalves foi um dos maiores e mais completos atletas que o Brasil já teve

João Gonçalves foi um dos maiores e mais completos atletas que o Brasil já teve. Mas passou longe dos cadernos esportivos - mesmo na hora de sua morte, há cinco meses. Disputou sete Olimpíadas como nadador e jogador de polo aquático e colocou o país na elite da mais pura das artes marciais, o judô. Conheça a história deste artista, verdadeiro maestro do corpo e da mente

Dia 27 de junho deste ano, véspera do jogo da seleção contra o Chile pelas oitavas de final da Copa do Mundo. Enquanto todo mundo preocupava-se com a teimosia de Dunga, a violência de Felipe Melo, a imprevisibilidade da Jabulani e as saliências de Larissa Riquelme, o Brasil perdia um dos maiores nomes de seu esporte. Com sete Olimpíadas no currículo, João Gonçalves Filho foi o atleta brasileiro que mais vezes participou da competição. Na natação e no polo aquático, foi 26 vezes campeão sul-americano e colecionou seis medalhas no Pan-Americano. Como treinador de judô, revolucionou a mentalidade do esporte, criando toda uma geração de campeões olímpicos, incluindo Douglas Vieira, Aurélio Miguel, Thiago Camilo e Leandro Guilheiro. No país do futebol, porém, sobrou pouco espaço nas manchetes para seu falecimento. Mesmo antes, a única vez que João aparecera na mídia brasileira havia sido na própria Trip, em matéria sobre esportistas longevos.

As primeiras braçadas de João foram no rio perto de sua casa, em Rio Claro (SP), onde nasceu. Filho de um funcionário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e uma costureira, cresceu de forma humilde. “Mas Deus dá talento para os pobres”, acredita Wilma Gonçalves, viúva do atleta. E João, além de talentoso, era cara de pau. Foi “descoberto” como nadador quando entrou de penetra na piscina do tradicional colégio Koelle. A diretora foi falar com o intruso que nadava mais rápido que os matriculados e, quando o menino já se preparava para um sermão, ganhou uma bolsa de estudos para competir pela escola.

Peixinho, como era chamado na época, venceu três campeonatos brasileiros consecutivos e foi fisgado pelo clube Fluminense, mudando-se para o Rio de Janeiro. Foi lá que conheceu Wilma, com quem foi casado por 50 anos. “Fui pedir um autógrafo, ele já era famoso. Estava no ponto, era bonitão. Já eu era só uma menina”, suspira. Na faculdade de educação física da Escola do Exército, Adhemar Ferreira da Silva, atleta de salto triplo e primeiro bicampeão olímpico brasileiro, era seu colega de classe. Num dos treinamentos, eles eram jogados em alto-mar e tinham de voltar nadando para a praia da Urca, sem perder o uniforme nem o coturno. “O Adhemar tinha três vezes o tamanho do meu pai, mas só conseguia voltar para a praia carregado por ele”, conta Cristina, uma das quatro filhas de João, treinadora de salto ornamental.

Tarzan brasileiro

 

Já com duas Olimpíadas na bagagem, João voltou a São Paulo para ser atleta do Clube Pinheiros, onde permaneceu até o dia de sua morte. O salário de esportista amador da época era ainda mais minguado que hoje em dia e, mesmo com os serviços de advocacia que prestava (João fez faculdade de direito no Mackenzie), as contas de casa não batiam no fim do mês. João então virou caminhoneiro, transportando laticínios da Vigor. “O pessoal do clube discriminava meu pai porque ele dirigia caminhão. Ele entrava na piscina e os ricos saíam. Como ele não arredava, eles tinham que voltar”, revela Cristina. Depois de um duro ano revezando-se entre a piscina, a estrada e o lar, João fez um pé-de-meia e comprou alguns caminhões, passando do volante para a administração da empresa. Mais tarde, abriu o Instituto Caracala, uma das primeiras academias da cidade, antes de o conceito de academia existir. “João sempre foi um visionário”, resume Beto Guimarães, treinado por João no polo e marido de Cristina.

“Ele entrava na piscina e os ricos saíam”

Faixa preta em judô desde os tempos do exército, João aprendeu a lutar jiu-jítsu trocando correspondências com Carlos Gracie. Para testar sua força e descolar um cascalho extra, costumava bater nas portas de fábricas: “Quem é o brigador daí?”, perguntava. O povo apostava e – dona Wilma garante – João sempre voltava para casa com dinheiro no bolso. Violento? Beto relativiza: “Somente quando precisava ser”. Ele conta que Gastãozinho Gracie costumava provocar o sogro sempre que ele passava em frente ao seu dojo. Um dia, farto, João decidiu resolver a questão no braço. Teria precisado de exatos 10 s para imobilizar Gastãozinho, que pediu uma segunda chance. Preso novamente numa chave de braço, escutou de João: “Agora vê se aprende a ser mais humilde”.

Como nadador ou jogador de polo, João esteve nas Olimpíadas de Helsinque (1952), Melbourne (1956), Roma (1960), Tóquio (1964) e México (1968). Ao lado do nadador norte-americano Johnny Weissmuller, famoso na pele de Tarzan nos cinemas, foi o único atleta a disputar dois esportes aquáticos numa mesma edição dos Jogos. Nunca chegou a subir no pódio, mas estava lá quando seus pupilos Douglas Vieira e Aurélio Miguel o fizeram por ele, respectivamente em Barcelona (1992) e Atlanta (1996).

João integrava a comissão técnica da seleção brasileira de judô desde 1978. Acompanhando nossos atletas em competições internacionais, percebeu que os oponentes de países socialistas levavam vantagem por causa de sua compleição física mais avantajada. O senso comum pregava que a musculação atrapalhava a mobilidade dos lutadores, mas João ordenou que todos começassem a puxar ferro. Resultado: mais duros na queda, os judocas transformaram-se numa das nossas principais fontes de medalha em Olimpíadas.

“Três anos atrás fomos brincar no tatame e ele quase me matou!”

Piaget ou Pinochet

“Treinamento é sofrimento”, ele bradava aos seus discípulos enquanto suavam o quimono. Um deles era o judoca campeão olímpico Aurélio Miguel, que conta: “Ele exigia que treinássemos até a exaustão. Ou melhor, superando a exaustão. Chamávamos de treino suicídio”. Para João, um bom treinador era, antes de tudo, um bom educador. Dependendo da situação, poderia encarnar tanto Piaget como Pinochet. “Ele era duro, sim, mas injusto jamais. Nunca me deu uma bronca. Sempre conversava com a gente sobre coisas que valiam para o tatame e para fora dele”, conta Leandro Guilheiro, medalha de bronze nos últimos Jogos de Pequim.

Mas João não exercitava apenas o corpo. Lia muito sobre os poderes da autossugestão, da cromoterapia e da hipnose. Carregava uma calcificação grosseira na clavícula, fruto de uma fratura que ele dizia ter curado somente com o poder da mente. Antes das competições, costumava trancar-se sozinho num quarto, deitava-se e fazia o que chamava de “relaxamento autógeno”.

Praticamente todos os Gonçalves são esportistas. Wilma passou o amor pelo salto ornamental para as quatro filhas do casal. Os netos, Ricardo e Gustavo, são promissores jogadores de polo do Sesi-SP. O patriarca dizia: “Para ter saúde, tem que botar o corpo para trabalhar. Não precisa ser campeão, mas tem que fazer algo”.

Depois de derrubar inúmeros gigantes o guerreiro João Gonçalves perdeu sua última batalha para uma formiguinha. Estava chegando para uma competição no Clube Pinheiros, foi desviar do tripé da caixa de som, caiu e quebrou o fêmur. A cirurgia foi um sucesso, mas o fígado – comprometido por uma hepatite C contraída numa transfusão sanguínea há mais de 30 anos – deu pane. Antes João estava em plena forma. Wilma diz que o terno do casamento deles ainda lhe servia bem. Já Ricardo, o neto mais velho, conta: “Três anos atrás fomos brincar no tatame e ele quase me matou!”. Pudera. João fez esportes durante todo o tempo em que esteve vivo. Além dos três que o consagraram, praticou boxe, vôlei, handebol, basquete, atletismo, hipismo, esgrima e até tiro ao alvo. Um dos maiores esportistas que o Brasil já teve só nunca jogou... futebol.

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