O enigma de M. Butterfly

Guimarães: ”Como um diplomata passou 15 anos casado com um homem sem saber”

Por 15 anos, o diplomata francês Bernard Boursicot dormiu com sua mulher, uma atriz de ópera chinesa, sem saber que na realidade ela era um homem - com pinto e tudo

Caro Paulo,

Você seria capaz de dormir mais de 15 anos com uma mulher, ter um filho com ela e, de repente, descobrir que ela era um homem, com pinto e tudo? Pois isso aconteceu de verdade, foi notícia famosa e virou uma peça sensacional de teatro e um filme nem tanto, apesar de assinado pelo cineasta David Cronenberg: M. Butterfly.

A notícia: em Paris, em 1982, o diplomata francês Bernard Boursicot e sua mulher chinesa, a atriz de ópera Shi Pei Pu, são presos por espionagem a favor da China. Durante o processo, o francês descobre que sua mulher era homem e tenta se matar. A peça começa com o diplomata na prisão, desesperado e perplexo, torturando-se com uma simples pergunta: “Como não percebi que transei 15 anos com um homem?!!”. Confesso que, de imediato, o que mais me impressionou não foi a insensibilidade do francês, mas a habilidade do chinês de esconder o pinto. Extraordinário! É muito mais complexo do que um homem seminu se travestir de mulher com tapa-sexo para subir numa passarela ou num palco. Pensa bem, esconder o pinto num rala e rola que dura 15 anos, só sendo muito artista para enganar nessa intimidade por tanto tempo.

Passada essa primeira impressão
de curiosidade de almanaque, voltei minha atenção para o diplomata desesperado que estava descobrindo sua total falta de intimidade com o feminino, falta de intimidade tão grande que não percebeu a ausência do feminino na relação. Na análise do próprio autor da peça, David Henry Hwang, o encanto do homem ocidental com seu pinto e sua masculinidade é tão grande que não sobra espaço para o feminino. E conclui: se a gente não tem esse feminino dentro, não consegue reconhecê-lo fora. Essa seria sua explicação para a dificuldade de homens amarem as mulheres. Ou, colocando de forma mais masculina, essa seria a explicação para a insatisfação das mulheres quanto à forma dos homens as amarem. Vai ver que foi por isso que elas desistiram de nós e a sabedoria popular registrou: “Quem gosta de pinto é veado, mulher gosta mesmo é de infraestrutura”. Não acho que isso é verdade, mas só tem graça porque não é totalmente mentira. E tenho quase certeza de que quem criou essa frase foi um macho bom de texto e ruim de cama, pelo menos aos olhos delas.

Hermafrodita
Diferente desse infeliz, Gilberto Gil confessa nossa falsa autossuficiência em versos, lindamente: “Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter. Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara é a porção melhor que trago em mim agora. É o que me faz viver”. Nosso medo da importância desse feminino é tão grande que a gente adora brincar dizendo que “a minha porção mulher é lésbica!”.

Oscilando entre a graça e a desgraça, nós ocidentais vamos reaprendendo a colocar o pinto no seu devido lugar: entre as pernas, e não entre os olhos. Entre as pernas, ele é instrumento de prazer e vida; entre os olhos, ele perverte nossa visão e se torna instrumento de poder e submissão. A não ser que o pinto seja o de Shiva, que é chamado de terceiro olho e significa, na tradição hindu, o poder criador, origem do mundo. É verdade: o símbolo de Shiva é um pinto. E como “senhor do lingam/yoni (pênis/vagina), é frequentemente representado em um só corpo com sua deusa, ela à esquerda e ele à direita”, como descrito pelo mestre Joseph Campbell. Isto é, o terceiro olho é meio hermafrodita mesmo. Mas isso é assunto para mais uma edição inteira da nossa Trip. Já que esta inaugurou a série, a próxima pode ser vagina e a seguinte, hermafrodita.

Abraço do amigo,

Ricardo

P.S. Shi Du Du, filho de Boursicot e Shi Pei Pu, mora em Paris com seus três filhos. Claro que ele não é filho natural do casal. Shi-filho foi comprado por Shi-mãe de seus pais verdadeiros.

*Ricardo Guimarães, 64, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus

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