O dia das namoradas

O colunista-presidiário fala de amores na prisão

Os repórteres, quando me entrevistam por conta do meu primeiro livro, querem saber como aprendi a escrever. Como desenvolvi meu estilo, já que era quase analfabeto quando fui preso. Respondo que não vejo nada de extraordinário no meu modo de escrever. E muito menos acredito que tenha um estilo. O que sei é que a noite me invadia e eu era tal como um túnel, oco por dentro. A sombra me tomava e eu não tinha um trapo roto de luz para me cobrir. Então, para sobreviver, da caneta e do papel, inventei a escrita, enquanto fazia água pelos olhos, como um náufrago.

Escrever, aprendi escrevendo. Ler complementou sempre. E porque vivi em celas individuais por 21 anos, necessitei escrever para me relacionar com pessoas. As cartas foram meu único veículo de comunicação com o mundo. Se escrevo e desenvolvo algum estilo, devo às cartas. Eu tinha que chamar a atenção sobre mim, dizer: "olha eu aqui; eu existo também!".

Precisava conquistar e conservar pessoas escrevendo; não havia outro meio. O que não é uma empresa fácil, dadas a urgência e a correria da vida aí fora. Construí amigos escrevendo. Amei e fui amado na tinta que fluía leve como água, no papel. Tudo era irreparável, como uma condenação. Sobreviver era preciso. Minhas namoradas eu as conquistei com meu coração, derramado em horas de prata. Os caminhos eram ásperos e o ar parado. A tristeza avançava para onde nada se podia esperar. Estava condenado a quase cem anos de prisão. Não havia futuro para mim. No entanto, necessitava construir esperança. E descobri: só havia esperança nas pessoas. E toda forma de amor passou a valer a pena, como diria o poeta.

Cecília, Maria, Carmem...

Fiz grandes amigos. Sorrisos puros que em relâmpago branco cortavam o céu longamente. E foram as mais generosas e magnânimas, minhas namoradas. Com minha primeira namorada, construí meu primeiro e depois derradeiro amor. Ensinou-me a pescar a mim mesmo dentro de minha própria pele. Amei inocente e puro. Embora não houvesse uma semana após a prisão. Existia a prisão e a dor, que continuava, completamente.

Depois vieram outras. Cecília, com seu rosto puro de coelha branca. Demorei um mês para vê-la mulher. Pairava entre a vida e o sol, como nuvem brilhante. Amei-a menino e lhe escrevi dentro e fora de todas as horas, até acabar, dolorosamente... Então uma grande amiga, Maria José, que só conheci por cartas, ouviu meus gritos quebrados e mancos que se espremiam na garganta. Deu-me o endereço de Rosa, a amiga namorada. Achava que amava porque necessitava amar, assim, sonhando em sonhar. Não me era suficiente. Quando amigos que me escreviam trouxeram Carmem, eu me perdi de uma na outra.

Indesculpavelmente dava a uma o que recebia da outra, e vice-versa. Atravessei. Era maravilhoso ter duas mulheres lindas e talentosas apaixonadas por mim. Eu as namorava com a alma reduzida. Certo de que pagaria caro por minha leviandade. E voltei aos farrapos, percebendo que meus sonhos nunca terminavam de morrer. A dor voltou a ser um outro acessório do meu corpo, já cansado.

Luiza, Nilde, Ely...

O abismo me mostrou o céu. O céu chamava-se Luiza. Novamente as cartas, os amigos e os contatos. Cheguei a me corresponder com 40, 50 pessoas do Brasil todo e até de outros países. Recebia de 5 a 10 cartas diariamente. Maria José, de novo. Apresentou-me Maria Nilde, que me levou à maior das amizades, Ely (que permanece até hoje), e desta a Luiza.

As cartas voaram diárias; as visitas se sucediam semanais. E como trouxeram o começo, também continham o fim, dialeticamente. Cheguei a me sentir feliz, cansado de estar triste. Escrever eram gestos soltos no ar. De um desses movimentos, Silvania nasceu para dentro de mim. Havia algo de gomo, redondo, um correr fecundado de rio que transbordava. Era também mar, e eu não sabia nadar. Amei mergulhado numa idéia vazia de verdade que se findou, tristemente.

Enfim, a luz. Eu que vivi me despejando pela janela da cela, de repente, reencontrei a primeira namorada. Qual vivesse ciclos, o lançamento de meu livro trouxe-me o último deles. A vida, que me sabia a longos ditados decorados, fez-se em claridade. Senti que chegara aonde me demorava a vida toda para chegar. E foram novamente as cartas o veículo da realização de meu coração. Amo, amo com maturidade e verdade absoluta. Estou pacificado, escrevendo cartas, textos e livros, aguardando o tempo de ser feliz.

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