O cozinheiro do apocalipse

por Kátia Lessa
Trip #165

Conheça Brian D. Price, chef do corredor da morte do Texas, o mais sangrento dos EUA

Bom apetite e adeus. Durante mais de dez anos, Brian D. Price, 57, foi o preso responsável pela última ceia de 211 homens. Todos à espera de uma injeção letal no corredor da morte mais movimentado dos Estados Unidos, o do Texas. Em 2004, um ano após sua primeira refeição fora da cadeia, reuniu as histórias por trás dos pratos e publicou Meals to die for (comidas de morrer), livro inédito no Brasil, de 503 páginas, ao longo das quais ele discorre sobre as despedidas gastronômicas. Como aperitivo, o chef oferece também mais de 40 receitas, os hits do corredor, que ele nomeia de forma sombria como Frango à Câmara de Gás, Batata Frita Obituário e Gulash Guilhotina. No forno, prestes a sair, está seu segundo livro, The price you pay (o preço que você paga), um romance baseado em fatos reais, que pretende denunciar as conspi­rações e a corrupção que azedam o sistema carcerário de seu país e fazem com que o número de execuções cresça cada vez mais. Brian é ainda personagem principal do documentário suíço The last supper (a última ceia) e, atualmente, além de apresentar um programa semanal de rock cristão ao lado da terceira mulher, prepara-se para inaugurar seu próprio restaurante, Way Station, onde finalmente um cliente insatisfeito poderá reclamar sem papas na língua.

Você cozinhava todos os dias ou apenas para o corredor da morte? Todos os dias. Ninguém é obrigado a preparar a última refeição de um condenado. O chef deveria ser um voluntário, e eu achei que poderia fazer um bom trabalho.

Qual foi a primeira refeição que você preparou? Foi o prato de um negro chamado Laurence Buxton, em 26 de fevereiro de 1991. Ele pediu filé-mignon, bolo de abacaxi, chá gelado e café. Nós não tínhamos filé no presídio naquele dia, por isso ele recebeu um T-bone. Em 1994, a diretoria decidiu que todos que pedissem carne deveriam receber um hambúrguer. Foi terrível.

Os presos tinham direito a sobremesa? Sim. Muitos deles pediam sobremesas com chocolate. Milk-shakes, bolos, tortas.

E se eu quisesse uma refeição preparada pela minha mãe? Eles permitiriam? No Texas eles diriam: “Você quer a sua mãe? Tente na próxima, baby!”.
Qual foi o prato mais saboroso que você preparou? Comida mexicana. Fiz farritas deliciosas. Passei a noite toda marinando a carne para que ela ficasse mais gostosa. O executado era de San Antonio, minha cidade natal.

E qual foi o pior pedido que já fizeram? Nenhum deles foi ruim, mas já fiz coisas esquisitas. Certa vez um preso pediu Scotch eggs. Eu não tinha idéia do que era aquilo. E, por coincidência, o policial supervisor que estava na cozi­nha disse que naquela manhã a receita do programa de culinária a que sua mulher estava assistindo era justamente aquela. Uma espécie de ovo cozido com salsicha, empanado e servido frio.

Alguma vez você se recusou a cozinhar para um executado? Um dia recebi o pedido de um homem que havia matado quatro crianças usando um facão de açougueiro. Eram colegas da minha filha na escola. Não conseguiria me dedicar verdadeiramente a esse trabalho.

Era você quem entregava os pratos? Não tinha contato direto com os executados. Mas certa vez eu estava saindo da cozinha quando os guardas levavam um homem que havia matado uma mu­lher de mais de 90 anos. Ele nos olhou de uma forma muito selvagem. Era um homem terrível.

Você é contra a pena de morte? Sou. A vingança não resolve nada. Um dos meus colegas da cadeia era o cara que limpava a sala de execução. Certa vez eu perguntei se não era uma tarefa muito dura, e ele respondeu que pior que os restos mortais era limpar as lágrimas e a maquiagem da mãe, filhas e esposa do executado, que ficavam no vidro da sala. A família paga junto com o cri­minoso. Não é justo.

Os pratos voltavam totalmente vazios? Muitos presos perdiam o apetite uma hora antes da execução e deixavam a bandeja intacta.

O que passava pela sua cabeça enquanto cozinhava o prato de um condenado? Era um momento muito sério e sombrio. Eu preparava cada prato com compaixão e tentava perdoar o executado. Quando terminava, eu rezava sobre a comida.

 



Você já era religioso antes de ser preso? Era cristão, mas minha carne sempre foi fraca. Só encontrei a paz para o meu estilo de vida maluco com a morte do meu irmão. Ele morreu de aids, mas horas antes pediu para falar comigo no telefone. Os policiais nos deram seis minutos. Voltei para a cela, chorei a noite toda e resolvi que ia mudar de vida.

O que mudou na sua rotina dentro da cadeia? Formei uma banda de rock cristão. Fizemos tanto sucesso que uma rádio famosa foi até o presídio nos entrevistar. A apresentadora se tornou minha terceira mulher.

Vocês se casaram assim que você saiu? Casei por procuração quando ainda estava preso. Passamos a nos corres­ponder por carta, e um dia ela me pediu em casamento em pleno programa ouvido por 40 mil pessoas. O presídio todo escutava a rádio, e foi emocionante. Os presos gritavam e choravam de emoção.

Você casou com uma mulher sem nunca tê-la beijado? Sim. Duas semanas depois do casamento tivemos direi­to a uma visita particular. Foi nosso primeiro beijo. Os lábios dela pareciam marshmallow, e eu estava muito feliz por descobrir que depois de 13 anos eu ainda era heterossexual.

Qual foi a primeira coisa que você fez quando deixou o presídio? Em 30 de janeiro de 2003, 14 anos e duas sema­nas depois de ter tido a pior noite da minha vida, minha mulher me buscou na porta da cadeia, me levou para uma linda casa no lago e fizemos amor a noite toda.

Por que você foi preso? Minha mulher me deixou e fugiu com meu equipamento de fotografia. Eu era fotógrafo. Meu irmão sabia para onde ela havia ido e não queria me dizer, então eu o seqüestrei com uma arma apontada para a cabeça, mas ele escapou. Ele foi até o juiz e disse que não gostaria que eu fosse preso, então fui condenado a ficar em liberdade condicional durante dez anos. Mas um mês depois eu me meti em encrenca e fui para a cadeia.

Que tipo de encrenca? Você não deveria ter feito essa pergunta.

Agora eu já fiz. Você matou alguém? Fui casado três vezes. A que fugiu foi a segunda mulher, mas eu tenho uma filha com a primeira. Na época ela estava com 15 anos e vivia com a minha ex-mulher, que deixou que nossa única filha dormisse com um rapaz de 21 anos. Ela engravidou, fugiu com o cara e eu fiquei maluco. Queria encontrá-lo de qualquer jeito. Então, naquela noite, fui até a casa da minha ex-mulher absolutamente descontrolado. Eu e ela transávamos de vez em quando e acabamos na cama. Eu tinha bebido e tomado uns remédios e, quando saí da casa, ela chamou a polícia e me acusou de estupro. Ela fez isso para me impedir de correr atrás do garoto. O juiz entendeu e disse que se eu assumisse a culpa podia ficar preso por apenas oito meses. Concordei, e essa foi a maior besteira da minha vida. O go­verno havia construído muitas cadeias, e era interessante para eles que todas elas estivessem cheias. Então me deixaram lá por 14 anos.

E o que aconteceu com a sua filha? Vocês se falam? Ela casou com o cara, teve quatro filhos. Minha neta mais velha também engravidou muito cedo. Isso significa que eu sou bisavô.

O que você fazia antes da cadeia? Eu era músico e fotógrafo. Hoje toco com uma banda de rock cristão na igreja e pretendo tocar ao vivo no meu restaurante. Antes eu tocava Led Zeppelin. Deep Purple. Eu vivia o sexo, drogas e rock’n’roll.

Qual vai ser a especialidade do seu restaurante? Filé de frango empanado. É tão gostoso que essa seria a minha última ceia se eu estivesse no corredor da morte. No Texas é um prato bastante popular e eu garanto que o meu é o melhor do país. Pelo menos ninguém reclamou até hoje.

Como você se tornou cozinheiro na prisão? Os guardas não gostam quando você diz que foi músico do lado de fora porque é tudo o que eles gostariam de ter feito da vida. Então um deles me enfiou na cozinha, e eu adorei, porque lá eu podia comer melhor que todo mundo.

Você ficava sozinho na cela? Minha cela tinha 3 m por 2 m. Só dá para dividir com uma pessoa. Então eu tinha que manter a mente ocupada para não enlouquecer. Escrevi quatro livros: uma autobiografia, Meals to die for, The price you pay e um romance que ainda está inacabado.

Você se lembra da primeira noite na cadeia? Como se fosse hoje. Tive os piores pesadelos da minha vida. Em uma palavra, a prisão é “barulho”. São roncos, choros, gritos de desespero e pessoas que mandam o outro calar a boca a noite toda.

Você fez amigos na prisão? A cadeia tem todo tipo de gente. Conheci muitos doutores, mestres. Gente inteligente e bons homens que só estão lá devido ao sistema penitenciário retrógrado e corrupto do Texas.

Você acha que isso piorou durante o governo Bush? Eu tenho vergonha de chamar este cara de presidente. Ele é uma piada. Um filhotinho de estimação do pai dele e de seus negócios corporativos. Perdemos muitos homens que poderiam estar livres porque esses caras só pensam em ganhar dinheiro.

Em quem você pretende votar para presidente? McCain é um idiota, dizem que Hillary é lésbica e Obama é o anti-Cristo. Não temos saída. Acho que vou me mudar para o Brasil, tomar caipirinhas, abrir outro restaurante e engordar um pouco as brasilei­ras. Vocês são todas tão adoráveis. Corpos perfeitos.

Por que Obama é o anti-Cristo? Ele é o candidato que mais me assusta. Tem a fala mansa, ninguém sabe de onde ele veio. Não tem história, tem um passado muçul­mano e ainda faz de conta que é cristão só para ganhar votos.

A comida ainda tem o mesmo significado pra você? Ho­je valorizo muito o fato de poder escolher o que vou comer. Os ingredientes que vou usar, o momento de apreciar uma refeição com pessoas que você ama. Passei por mudanças simples, porém profundas. Ninguém sai igual da cadeia.

Quais outras mudanças? O simples fato de poder apagar a luz antes de dormir é uma bênção. A cadeia nunca fica escura nem silenciosa. Morri de medo na minha primeira noite fora porque no presídio eu estava o tempo todo seguro, e em casa eu des­con­fiava de qualquer barulho. Tive que aprender a usar celular, internet e fiquei chocado com o tamanho dos supermercados.

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