Reviramos o baú de Emilio Carrera, pianista e arranjador do Secos & Molhados, atrás de fotos, histórias e lembranças
A Variant 72 não liga. A chave gira no contato, o carro engasga, embreagem no chão, o carro engasga, a marcha engata, o carro engasga. Ignição que teima a pegar, público em polvorosa. Gritando, os fãs rodeiam o variantão quase imóvel: ele se balança empurrado por todos os lados. A cavalaria surge em socorro da máquina que, até então empacada, finalmente dá sinal de vida. O mar de gente é aberto pela força policial. Em vez de reprimir, ela faz papel de escolta. Na direção do carro está Emilio Carrera, da banda Secos & Molhados.
“Era igual aos Beatles”, diz ele sobre o episódio ocorrido em Recife, ao fim de mais um show da turnê da banda em 1973. A mesma tática de saída também era coisa dos britânicos. Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, a linha de frente da banda, deixavam o palco enquanto a última música era executada por Marcelo Frias na bateria, John Flavin na guitarra, Willy Verdaguer no baixo, Sergio Rosadas na flauta e Emilio no piano. “Os três entravam cada um em um carro e se separavam”, conta o artista.
O fato é um dos tantos que dão conta da coqueluche que tomou o Brasil no início da década de 70. Em pouco mais de três anos, o Secos & Molhados partiu de apresentações mambembes no circuito de teatros paulistanos a concertos em ginásios por todas as regiões do país. No ano de lançamento, o homônimo álbum de estreia vendeu mais de um milhão de cópias, alçando seis faixas aos primeiros lugares nas paradas de sucesso e levando homens maquiados e fantasiados ao horário nobre da TV -- até o governo militar teve de engolir.
“Foi um dos maiores sucessos de todos os tempos da MPB”, orgulha-se Emilio. Com 65 anos, cabeleira prata e um MacBook cheio de fotos de bastidores e vídeos do YouTube, o jovial senhor contou à Trip sua história de vida antes, depois e junto do Secos & Molhados. Mal sabem os moradores do condomínio de grama bem cortada e azaleias bem cuidadas, mas eles dormem bem perto de um dos pioneiros da contra-cultura no país. “A gente não fazia concessão”, afirma o pianista e arranjador do Secos & Molhados.
Emilio diz ter comandado sua primeira banda aos cinco anos. Garoto, correu da coxia para o palco em que se apresentava o jazzista Tommy Dorsey e sua big band. O maestro pegou Emilio no colo e fez graça da situação. “Aí eu regi, mais ou menos, mas regi”, brinca. O hábito vinha da família de origem espanhola que vivia de música aqui no Brasil. Emilio não escapou à sina do sangue latino: aprendeu a tocar piano e passou a estudar música clássica.
O músico seguiu a cartilha até rasgá-la na juventude. “Quando os Beatles surgiram eu dei um chute em tudo”. Antes dos vinte anos criou seu primeiro conjunto musical, O Bando -- tido hoje como uma das obscuridades da música psicodélica nacional. Ao lado de Mutantes e Beat Boys, o grupo abriu alas para a incipiente cena alternativa de São Paulo. “A cidade começou a ferver por causa dos festivais”, lembra ele. A mesma agitação chegaria ao Rio ao fim da década encerrando a mansidão da Bossa Nova e o quadradismo do samba-canção. Emilio foi junto.
“Foi a época do desbunde: muito fumo, muito ácido e toda aquela galera tocando”
“Foi a época do desbunde: muito fumo, muito ácido e toda aquela galera tocando”, diz. Em dois anos na capital carioca, Emilio perdeu as contas da quantidade de festas a que foi. Também não sabe precisar quanto tempo improvisava em um único tema sobre o palco de casas como o Circo Voador. Em fins de 1971, entretanto, o prazer começou a se transformar em excesso e o pianista decidiu voltar a São Paulo como músico da sugestiva peça “A Viagem”. Um dos figurantes do espetáculo era Ney de Souza Pereira, vulgo Ney Matogrosso.
“O Ney já era um grande talento, chamava atenção o timbre de voz que ele tinha”, lembra. A convite do trio linha de frente do Secos & Molhados -- João Ricardo e Gerson Conrad, além de Ney --, Emilio integrou a banda. O time fechou com Marcelo Frias, John Flavin, Willy Verdaguer e Sergio Rosadas. Ainda que jovens, eles tinham experiência e conhecimento que seriam fundamental na identidade da banda. “Nós chegamos neles três com muita força. A gente tinha essa pegada rock, marginal. Nós demos a orquestração”, afirma Emilio.
A pedra do outrora trio foi lapidada em pouco tempo. Após algumas apresentações na Casa de Badalação e Tédio, espaço do Teatro Ruth Escobar, o selo Continental convidou a banda para gravar um álbum. Foram quatro meses entre ensaios e estúdios até a finalização do disco de estreia do grupo, com direito a aparição na TV tocando “O Vira”. Em uma semana as apresentações passaram de vazias a lotadas. “Saí correndo no meio de um show e fui até a frente do teatro pela saída lateral pra ver as pessoas porque eu não acreditava!”, diz Emilio.
“Por mais que a gente tenha trabalhado pra fazer sucesso, na hora que estouramos foi muito mais do que imaginávamos”, afirma o pianista. O país foi arrebatado pela confusão entre escárnio, lirismo e manifesto embalada em melodias simples, mas repletas de manobras sofisticadas e roupagens incomuns na MPB -- como compassos quebrados em instrumentos elétricos. Como se não bastasse, o caldo folk-rock-popular era entregue no primeiro plano por um trio que antecipava a mise-en-scéne de bandas como Kiss ou as discussões sobre a homossexualidade. “Gente simples cantava nossas músicas”, conta Emilio.
“O Ney pegou o cigarro Minister e o isqueiro Bic e falou: parei no som”
Um dos momentos marcantes da escalada do sucesso aconteceu no Maracanãzinho, no verão de 1974. O ginásio carioca recebia pela primeira vez um grupo de rock em apresentação solo, mas um único show não foi suficiente. “Olhamos a janela do lado de fora e estava tudo parado no trânsito. Nosso empresário falou: vamos fazer outro show. E a gente: vamos!”, lembra Emilio. Ele estima que, naquela noite, o Secos & Molhados tocou para 50 mil pessoas. O feito foi registrado no disco Secos & Molhados ao vivo no Maracanãzinho.
Os militares seguiam na cola, apesar do sucesso. “Eles percebiam o que a gente fazia, mas não conseguiam impedir“, afirma Emilio. Depois do Maracanãzinho, o grupo quase foi preso em um show em Londrina. Escaparam da cadeia, mas não do fim. Segundo o pianista, a ingerência de João Ricardo na troca de empresário e na gestão financeira minou a banda. Ao fim de 1974 a formação original do Secos & Molhados terminava em uma reunião em São Paulo. “O Ney pegou o cigarro Minister e o isqueiro Bic e falou: parei no som”, conta o pianista.
O segundo disco foi gravado pouco antes da dissolução. Mesmo assim, a fonte de Emilio secou com o fim do grupo. “Eu estava ganhando muito dinheiro, tinha assumido compromissos”, lembra ele. Para pagar as contas, passou a tocar com Eduardo Araújo, “o bom”, mas não durou muito. Voltou a fritação virtuosa nos teclados com o Humauca, grupo de rock psicodélico que formou com amigos como Willy, também egresso do Secos & Molhados. “Depois de um ano de banda eu fui trabalhar em agências pra tentar traduzir a comunicação em música”, diz.
Durante quase vinte anos Emilio se dedicou ao mercado publicitário. Trabalhou em grandes empresas, desempenhou funções de alto escalão, conquistou prêmios no Brasil e no mundo, abriu o próprio negócio. Um dos revéses típicos do capitalismo jogou suas finanças novamente abaixo e o pianista resolveu voltar a seu instrumento de infância e juventude. “Me enfiei no piano e um dia o Ney me ligou me convidando para ser o diretor de música do show que ele queria fazer, o Inclassificáveis”.
O reencontro dos amigos aconteceu em 2006. Como nos anos 70, a turnê teve todos as apresentações lotadas. Era o impulso que Emilio precisava para lançar carreira solo, programada para esse ano. No repertório virão músicas de sua composição, mas na gaveta estão as memórias dos Secos & Molhados -- algumas na galeria acima -- e na cabeça a esperança de mudanças. “Queria que surgisse outro Secos & Molhados nos tempos de hoje, uma coisa atual com a mesma força. A gente está precisando de um chacoalho”.