Nunca estivemos tão seguros

Caramuru: ”Você se sente inseguro? Sim? Bom, você não está sozinho”

Na maior parte da história, os seres humanos iam dormir sem saber se estariam vivos no dia seguinte ou seriam estuprados ou escravizados

Você se sente inseguro? Sim? Bom, você não está sozinho. Não digo em casa, na rua ou mesmo no Brasil. O que quero dizer é que você não está sozinho na história da humanidade.

Para falar a verdade, você nem deveria se sentir assim tão inseguro. O mundo onde vivemos (apesar de tudo) nunca foi tão seguro. Os seres humanos passaram a maior parte da história indo dormir sem saber se chegariam vivos ao dia seguinte ou se seriam estuprados ou escravizados. Ou você acha que aqueles muros altos dos castelos medievais foram feitos só para inspirar os desenhos que Walt Disney faria no futuro? A Idade Média era tão insegura que a nobreza extraía seu poder do fato de fornecer segurança às pessoas comuns. Eram os justiceiros reinando, literalmente.

Mesmo no poderoso império romano você não estaria imune de ver sua cidade saqueada por cartagineses, bárbaros ou piratas. A praia, esse lugar idílico onde você gosta de torrar ao sol e se empanturrar de cerveja e camarão frito... pois saiba que as praias eram os lugares mais inseguros que havia, pois era nelas que os piratas e os traficantes de escravos chegavam com maior facilidade e sem aviso prévio. De 1580 a 1680, enquanto nascia o tráfico africano para as Américas, 7 mil europeus ocidentais eram escravizados por ano e vendidos no Mediterrâneo. Entre 1600 e 1750, pelo menos 20 mil ingleses e irlandeses eram mantidos como escravos no norte da África. O mesmo dilema era vivido por franceses, belgas, espanhóis, portugueses... Isso para não falar nas perspectivas de nascer na África meridional de 1500 para cá (não que a escravidão por lá não existisse antes, mas é que os números, daí em diante, explodiram).

Você reclama da insegurança no trânsito? Você sabe o que era viajar (em navios, a cavalo, em caravanas de camelos...) nos séculos passados? O choro das despedidas era porque, em boa parte dos casos, tratava-se definitivamente de uma despedida. E as questões religiosas e de convicção pessoal? Você as considera sérias hoje? Se capturado pela Inquisição por ter sido denunciado como um cristão duvidoso, só com muita sorte você escaparia de ser queimado vivo.

Mesmo não tão longe, no século 20, a insegurança provocada por motivos étnico-culturais pareceu mais viva do que nunca, que o digam judeus, ciganos, armênios, bósnios, tútsis... OK, essa questão não está resolvida. Mas, que já melhorou um bocado, isso você não pode negar.

Temer fantasmas, a noite escura, o desconhecido e os diferentes é algo que está em nós há tanto tempo que parece ter se tornado parte de nosso DNA. Somos medrosos, às vezes com razão, mas a verdade é que nossos avós tinham muito mais motivos do que nós para serem inseguros. Existe hoje uma cultura da insegurança e um negócio milionário vivendo dela, com produtos como câmeras de vigilância, cercas elétricas, carros blindados... o que é desproporcional em relação aos riscos reais que corremos. Porque a vida nunca será 100% segura. Sempre haverá os assassinos malucos, os acidentes de trânsito, as quedas de avião. Não vou dizer que o mundo não poderia ser mais seguro. Redução de desigualdade social, de preconceitos e descriminalização do uso de drogas são coisas que não eliminariam, mas diminuiriam muito o número de mortes.

Abaixo os muros

E aproveito para emendar uma sugestãozinha bem pessoal: que tal se fossem proibidos os muros altos nas casas e nos prédios? Pois uma das piores pragas da atual cultura da insegurança é essa abundância de muralhas, que transformam as ruas em meros corredores de carros e os pedestres em seres desprezíveis que seguem teimando em passar pelas calçadas espremidos, vigiados pelas câmeras e olhados com desconfiança por seguranças engravatados e armados.

Se eu me sinto inseguro? A pé, e ao pé desses muros, sim, eu me sinto.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia.
Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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