Em 94, um adolescente viciado em crack leu a Trip especial sobre cocaína e mudou sua vida
Quando a Trip tinha apenas 8 aninhos, publicamos uma edição sobre cocaína. Um adolescente viciado em crack leu a revista e mudou sua vida. Hoje ele é um psicólogo que ajuda dependentes químicos a se livrarem do vício
Aos 17 anos, o adolescente de classe média paulistana Mauricio Cotrim já tinha experimentado quase tudo. Aos 4, bebericava cachaça no colo do pai. Aos 7, fumou o primeiro cigarro, aos 10, usou inalantes e, aos 13, conheceu a maconha e a cocaína. Aos 15, veio o crack e foi ali que ele se afundou. “Na primeira vez que usei parecia que tinha cheirado dez carreiras de pó de uma vez só. São 15 s de excitação total”, conta. Logo ficou viciado e passou a viver em paranoia constante. “Tinha certeza de que o esquadrão da SWAT estava atrás de mim. Ficava espiando pelo buraco da fechadura, me escondia no armário. Achava que uns agentes iam sair pelo ralo do banheiro.” Até que, aos 17 anos, o rapaz fez uso de uma revista Trip. Era uma edição especial sobre cocaína publicada em abril de 1994 (http://tinyurl.com/crafg88). “Aquilo mudou minha vida. Foi depois de ler aquela revista que fui procurar ajuda e me tratar.”
Mauricio ficou internado por seis meses numa clínica para dependentes químicos em Campinas (SP). “Ele era muito mimado, briguento, arrumava confusão por qualquer coisa. Mas, no fundo, carregava um sofrimento muito grande. Por muito tempo chorou, achando que não conseguiria se livrar do vício”, conta Paulo Henrique Zeni, que foi o conselheiro (espécie de terapeuta de grupo) de Mauricio na época. Após a internação, o adolescente teve uma recaída no uso de drogas, se recuperou e então deu um novo rumo à sua vida. Passou a trabalhar como voluntário dos Narcóticos Anônimos, grupo de ajuda mútua entre adictos que frequenta até hoje. Mergulhou nos estudos sobre dependência química, fez vários cursos, estagiou em diversos lugares. Formou-se em psicologia em 2010 e hoje, aos 34 anos, usa sua experiência para ajudar outras pessoas que vivem o mesmo drama de sua adolescência.
O ex-junkie tornou-se um psicólogo especializado no tratamento de dependentes químicos. Em seu consultório em São Paulo e em duas clínicas no interior paulista – uma em Atibaia e outra em Itu – atende a pacientes que, como ele, chegaram ao fundo do poço. A clínica de Itu foi fundada por Paulo, o conselheiro de Mauricio no passado. Segundo o psicólogo, não havia como escolher outra profissão. “Tive ajuda quando precisei e agora ajudo quem precisa. É um movimento de ‘mão dupla’, e que me alimenta a alma a cada dia. Não desistiram de mim lá atrás, portanto, enquanto precisarem de mim e eu puder ajudar, estarei junto deles”, ele conta para a Trip, 17 anos depois de encontrar aquela fatídica, e bendita, edição.
“Passei a noite fumando crack. De manhã, a droga acabou e entrei num desespero muito grande. Me deu vazio e pensamento suicida”
Quando você começou a usar cocaína?
Ao completar 13 anos. Sempre fui muito precoce, gostava de andar com um pessoal mais velho da Pompeia, bairro onde eu morava. Tinha atração pelo proibido, estava sempre atrás de uma adrenalina a mais. Sabia quem eram os caras que cheiravam, que tinham sido presos. Um dia eles armaram o esquema para a minha primeira vez. Passaram a noite cometendo furtos, compraram a cocaína e me levaram para uma obra abandonada, onde experimentei. Adorei a sensação de onipotência que ela proporcionava. Com menos de um ano de uso, eu já cheirava cinco vezes por semana.
Seus pais não perceberam seu uso de drogas?
Eles demoraram para perceber porque já tinham muitos problemas. Meu pai era alcoólatra. Teve um escritório de contabilidade, foi bem-sucedido, mas depois foi se degradando por causa do vício. Então era uma família muito disfuncional. Mas claro que uma hora a coisa ficou escancarada. Começaram a sumir objetos deles, minha mãe era chamada para me buscar na delegacia. Às vezes eles me expulsavam de casa, mas depois abriam a porta novamente.
Como foi a primeira vez com o crack?
A minha turma da Pompeia começou a andar com um pessoal da Bela Vista. Havia um intercâmbio de drogas e crimes. Foi aí que a gente conheceu o crack. Naquela época, era visto como uma droga de menor de rua, o uso não era tão difundido. Já existia a Cracolândia, mas era uma coisa bem menor.
Você gostou de primeira?
No começo achei uma delícia, mas depois virou uma miséria. Fui ficando cada vez mais paranoico, com a sensação de estar sendo perseguido o tempo todo. É uma loucura. Eu comecei usando nas ruas, depois fui para o meu quarto e terminei dentro do armário. Minha mãe cansou de me tirar de lá. Eu tinha movimentos involuntários dos braços e das pernas. Ficava chacoalhando, tremendo, parecia que dançava “Thriller”, do Michael Jackson. Cheguei a pesar 28 quilos a menos do que hoje. Tinha 46 quilos com 1,71 m de altura.
Quando chegou ao fundo do poço?
No começo de maio de 94 eu tava usando muita droga, tava numa pegada muito forte. Nas semanas anteriores tinha acontecido de tudo. Tava devendo dinheiro para traficantes, apanhei muito.
Foi quando você decidiu procurar ajuda? Foi nessa época. Um dia eu troquei uma TV que tinha acabado de ganhar por uma quantidade grande de droga. Passei a noite toda fumando crack. De manhã, a droga acabou e entrei num desespero muito grande. Me deu vazio e pensamento suicida. Fui para o quarto da minha irmã, que era surfista, e encontrei uma revista ao lado da cama. Era uma Trip sobre cocaína,.
Qual foi sua reação?
Aquilo me interessou. Comecei a ler e dei de cara com a entrevista com um ex-junkie. Me identifiquei muito com a história dele. É tudo muito parecido: o fundo do poço, as emoções. Foi a primeira vez que ouvi falar em dependência química. Pensei: ‘Pô, eu sou isso aí’. Quando a minha mãe chegou em casa, falei: ‘Sou dependente químico, estou doente e preciso de ajuda’. No mesmo dia, fomos ao Denarc e encontramos o delegado Corazza, na época diretor da Divisão de Prevenção e Educação que havia dado entrevista à Trip. Lá indicaram o tratamento no Instituto Souza Novaes, uma clínica em Campinas.
“Dei de cara com a entrevista com um ex-junkie. Me identifiquei com a história dele. É tudo muito parecido: o fundo do poço, as emoções”
Como foi a internação na clínica?
Demorei uns dois meses para aterrissar. Era muito mimado, estava sempre arrumando briga. O Paulo Henrique Zeni, que foi o meu conselheiro, uma espécie de coordenador terapêutico, dizia que o meu termômetro era o futebol. Uma vez, numa dividida de bola com um cara chamado Rogério Negão, ele me agrediu e eu saí dando risada. Antes por muito menos eu teria jogado pedras, saído na porrada e abandonado o jogo. Isso foi lá pelo quarto mês de internação. Foi quando o Paulo viu que o tratamento tinha começado a funcionar. Eu estava mais sereno e mais receptivo. Hoje trabalho como psicólogo na clínica fundada pelo Paulo em Itu, o Instituto Novo Mundo.
Teve alguma recaída depois? Tive. Saí da clínica e voltei a andar com o mesmo pessoal da Pompeia. Não tem como parar de usar drogas mantendo os mesmos hábitos e andando com as mesmas pessoas de antes. Dezessete dias depois de deixar a clínica eu já tinha voltado a usar. Fiquei mais seis meses na ativa.
Qual foi sua trajetória até se tornar terapeuta?
Comecei fazendo trabalho voluntário no NA. Ia na Febem, na Casa de Detenção. Fui fazendo tudo quanto é curso: de terapia comportamental, de acompanhamento terapêutico. Lia tudo sobre dependência química. Todo mundo falava: ‘Maurício, você fala bem, você pega rápido’. Em 98, fui trabalhar numa clínica. Depois entrei na faculdade de Psicologia. Fiz um estágio atrás do outro. Hoje tenho um consultório particular em São Paulo e atendo em duas clínicas para dependentes químicos.
Você pensou em escolher outra profissão?
Eu não podia trabalhar com outra coisa. Tive ajuda quando precisei e agora vou ajudar quem precisa. Procuro dar aos meus pacientes o mesmo tratamento que recebi: acolhimento, firmeza e disponibilidade, pois sei que a demanda extrapola os 45 minutos de consulta. Foi assim que agiram comigo em terapia. Quem passou pelo problema como eu sabe da importância de estar disponível 24 h por dia. Não desistiram de mim lá atrás, portanto, enquanto essa turma precisar de mim e eu puder ajudar, estarei junto deles.
Como sua experiência ajuda a lidar com seus pacientes?
A conversa é de igual para igual. Eu entendo o que eles estão passando e isso cria uma empatia muito grande.
Qual foi o paciente que mais te marcou?
Tinha um cara viciado em crack que tomava conta dos carros na rua de um grupo de NA. Ele vivia como mendigo, tinha várias doenças, estava sempre cheio de sarnas e micoses, todo vomitado. Um dia eu e um colega o pusemos no meu carro e o levamos para tomar banho. Fizemos um miojo para ele, demos uma roupa e o levamos para a clínica onde eu trabalhava . Acompanhamos todo o tratamento dele. Ele está limpo há quase sete anos. Era analfabeto e agora está aprendendo a ler. É um baita exemplo que me emociona. Toda vez que o abraço, sinto que estou no caminho certo e que as minhas escolhas valeram a pena.
O Veterano
Na edição da Trip sobre cocaína de 1994, o ex-junkie que deu a entrevista das Páginas Negras não era identificado pelo nome e seu rosto aparecia borrado nas fotos. Entramos em contato com ele, que, desta vez, topou se identificar. Fernando Waack tem 48 anos e mora hoje em Florianópolis, onde surfa e vive da renda do aluguel de um prédio de apartamentos que constr uiu na Lagoa da Conceição. Quando contamos a ele a história de Mauricio, Fernando logo o identificou e se emocionou. Os dois foram companheiros nas reuniões dos Narcóticos Anônimos em São Paulo quando o então adolescente começou a frequentá-las. “Eu recebi o Mau Mau no NA dos Jardins em 1995. Mas nunca falei que era o cara da Trip, onde eu trabalhei na área comercial no começo dos anos 90. Até hoje nos encontramos quando vou a São Paulo”, conta.
Após a entrevista, Fernando ficou quatro anos limpo. Depois recaiu, passou oito anos “na ativa”, cheirando cocaína e bebendo muita cachaça. “Fui para a cachaça mais escrota, aquela de R$ 1,20 a garrafinha de plástico. Fiquei inchado, sujo, dormindo em papelão, totalmente entregue às baratas”, diz. Nesse período, foi internado seis vezes em um hospital psiquiátrico. Na última internação, foi amparado por um grupo de evangélicos da igreja Bola de Neve. “Eles nem me conheciam, mas oraram por mim, deixaram uma Bíblia e trouxeram uma palavra de conforto. Quando saí de lá, me visitaram, me levaram para pegar onda e me adotaram quando ninguém mais acreditava em mim. Aquilo me tocou. Estou limpo há quase seis anos.”
Fernando deixou a igreja por “não concordar com algumas coisas que rolavam lá”, mas continua frequentando as reuniões dos Narcóticos Anônimos e dos Alcoólicos Anônimos, onde dá apoio a outros dependentes. “É a coisa mais importante da minha vida. Tenho muito mais segurança para falar com alguém que está na lama do que com um cara que é PhD em medicina, mas não sabe o que é esse drama. É como se ele fosse de outro planeta”, explica. Segundo ele, trabalhar na recuperação de adictos é uma forma de transformar a própria experiência degradante em algo produtivo. E conclui: “Aquele lixo que foi a minha vida ajudou a mudar a do Mauricio. E o lixo que foi a vida do Mauricio faz com que hoje ele consiga tratar outras pessoas. É uma corrente em que um ajuda o outro. Afinal, a gente também recebeu esse apoio quando tava no fundo do poço e achava que não sairia mais de lá”.
ONDE PROCURAR AJUDA
Narcóticos Anônimos www.na.org.br
Grupos para familiares de dependentes químicos www.naranon.org.br
Alcoólicos Anônimos www.alcoolicosanonimos.org.br