No fim do arco-íris

por Emilio Fraia

Gordinhos, carecas, grisalhos. Longe do ?hype? e da ?badalação? do mundo gay, homossexuais de 30 a 70 anos se encontram semanalmente numa festa no centro de São Paulo.

Filhos de uma época em que a discriminação e a repressão eram maiores do que são hoje, eles deixam de lado o culto ao corpo e à juventude, buscam relações estáveis, não têm iPod nem dão muita bola para a São Paulo Fashion Week  

Por Emilio Fraia // Fotos João Wainer e peetssa

Bigodes, bigodes por toda parte. Na pista, a meia-luz, os bigodes dançam e flertam, pedem coquetéis, um gim-tônica, flutuam sobre os copos de hi-fi, puxam papo. Castanhos, brancos, tingidos. Bem aparados, molhados de cerveja, cantam Maria Bethânia, Roberto Carlos. Vibram quando da cabine do DJ saltam os primeiros naipes da orquestra de Ray Conniff. Alguns, tímidos, escondem o sorriso; outros, os mais atirados, se aproximam, falam no ouvido. A música fica lenta e os bigodes, bem juntinhos, deslizam pelo baile. A festa começou.

O de bigode prateado é o Ivan Santos. Contador, tem 50 anos e freqüenta o ABC Bailão há oito. Há quatro anos, ele organiza no Bailão uma noite beneficente que arrecada alimentos para uma creche. Ivan já foi casado e tem duas netas; pediu o divórcio porque não queria manter uma vida dupla. É homossexual assumido desde os 25 anos. No momento, Ivan está solteiro. Procura alguém de 25 a 35 anos para um relacionamento sério. “Quero conhecer uma pessoa pra ficar junto, sair pra jantar, bater papo”, explica Ivan. “Um homem sincero, que tenha bom caráter e dance forró direitinho, de preferência de rosto colado.” Ivan (que no Orkut participa de comunidades como “Procuro Namoro Sério entre Gay”, “Timão Bicampeão da Parada Gay” e “Dormir de Conchinha”) namorou cinco anos um companheiro que conheceu no bailão. “É um ótimo lugar para fazer amigos”, diz.

Fome Zero

O ABC Bailão, no centro de São Paulo, existe há dez anos. Abre de quinta a domingo e recebe cerca de 450 pessoas por noite. Amarildo Donizete, 44 anos, bigode preto com fios grisalhos, é um dos dois sócios. Fala que o sucesso da casa se deve ao clima família. “Aqui não temos dark room, é proibido ficar sem camisa e os seguranças fazem rondas periódicas e advertem os mais empolgados para evitarem uma pegação excessiva”, conta. Michês, travestis e drag queens não são habitués do local, e na pista, no lugar dos costumeiros go-go boys, colunas gregas e uma samambaia.

Às quintas-feiras, o ABC (sigla que significa “Amigos Bailam Comigo”) é predominantemente da terceira idade. Quem tem mais de 50 anos paga cinco reais de entrada com direito a uma cerveja. Incluído no preço, um farto buffet de frios, tortas, saladas e frutas. “O que faz mais sucesso é a batata com alecrim e sal grosso”, revela o chef Erasmo Bezerra, 40 anos, responsável pelo buffet. Esfihas, coxinhas e croquetes também estão entre os preferidos da noite, que ficou conhecida como “fome zero”.

Nas pick-ups, os DJs Francisco e Fernando tocam de tudo. De rock a sertanejo. De flashback a bolero. “É o baile do talco, porque olhando de cima só vemos cabeça branca”, brinca o DJ Francisco, de 47 anos, enquanto alisa o bigode e levanta a pista com uma canção da banda Calypso. “Tem cliente que traz CD de casa pra gente tocar”, comenta o DJ Fernando. “Quando colocamos Madonna no telão, a interação é total.” Fernando, bigode castanho, 40 anos, diz que é comum receber cantadas. “O pessoal paquera, manda telefone, mas tudo no maior respeito”, fala.

As pessoas que freqüentam o Bailão são discretas. João (nome fictício), por exemplo. Ele tem 57 anos, usa sapatos, cinto e bigode caramelo. É de Bauru e, funcionário de uma estatal, costuma vir a trabalho para São Paulo. Ninguém de Bauru — nem família, nem amigos — sabe que ele é gay. “O preconceito é muito grande, não mudou nada”, assegura. João já teve namoradas, mas só para disfarçar sua opção sexual. Quando vem a São Paulo se hospeda em um hotel na avenida Vieira de Carvalho, na Praça da República, perto de boates como a recém-inaugurada Cantho e de bares como o Caneca de Prata e o Lord Byron, pontos de encontro do pessoal mais velho. João, como a maioria dos freqüentadores do ABC Bailão, não gosta de homens afeminados. “Prefiro machos, homens de verdade”, diz.

Coroa, gordo e peludo

Felipe Gurgel tem 21 anos; Ken Lewis, 64. Chegaram juntos ao Bailão e estão ali, se beijando no andar de baixo. Ken é australiano e conheceu Felipe em um bate-papo na Internet. Conversaram e trocaram mensagens durante oito meses até que resolveram se encontrar. Ken ofereceu uma passagem para que Felipe o visitasse na Austrália. Felipe aceitou. Atravessou o mundo e se apaixonaram. Ken agora está no Brasil: é a lua-de-mel do casal. Felipe espera se mudar para a Austrália em novembro. “Minha mãe nunca vai aceitar esta situação”, conta Felipe, que parou de estudar e trabalha no restaurante do irmão. “Ela é extremamente católica, preconceituosa e acha que eu fui seduzido por um velho.” Ken pesa 130 quilos, é peludo e tem cabelos brancos. “Homem pra mim tem que ser velho e barrigudo, quanto mais barriga melhor. Gosto de urso”, afirma Felipe. “Meu símbolo sexual é o Jô Soares.” Felipe diz que se interessa por homens mais velhos porque eles são mais experientes e “dominam melhor a relação”. Felipe não é michê. “O Ken tem muita raiva quando alguém olha pra gente e acha que sou garoto de programa, que nossa relação tem a ver com dinheiro.” Quando o assunto é Viagra, Felipe diz que ele e Ken nunca experimentaram. “O mais jovem precisa entender o parceiro mais velho. A ereção do mais velho é diferente, não é completa, e o mais jovem precisa se adaptar a isso.”

Assim como Felipe e Ken, existem muitos outros casais cuja diferença de idade é grande. Cláudio, de 69 anos, e Fernando, de 25, se conheceram há poucos minutos. Fernando veio do Rio, é a primeira vez dele no Bailão. Cláudio, um senhor de cavanhaque branco, diz estar um pouco decepcionado com a moçada. “A maioria é muito avoada, não quer nada sério, apenas uma noite e nada mais”, reclama. Uma pesquisa feita em 2005 pelo Clam (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos), em parceria com a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo e com as universidades Cândido Mendes, USP e Unicamp, mostra que a maioria dos gays que participou da Parada do Orgulho GLBT de 2005 tinha relacionamentos estáveis. Foram ouvidos 973 participantes. Entre os que declararam não ser heterossexuais, 45% disseram estar casados ou namorando. Entre os de 40 anos ou mais, 39% viviam há mais de seis anos com o mesmo parceiro. Se depender de Fernando, a relação vai longe. “Ele é um amor”, fala. “Gosto dos mais velhos porque são mais carinhosos. Já namorei meninas, mas não era a minha praia.”

Sob as colunas gregas, o bar está no auge da animação e — diz o barman — o bigode é a preferência nacional. Ruivos, grisalhos, compridos. Dois senhores gordinhos se beijam. O escritor Italo Calvino disse que nas Romas fellinianas reinavam a “truculência elementar do Carnaval” e a “natureza sanguínea do instinto espetacular”. O Bailão parece um filme do Fellini. O Satyricon, talvez. Mas tudo muito comportado, atrás dos bigodes. Sob as colunas clássicas, os bigodes.

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