Natal, macumba e piercing

por Henrique Goldman
Trip #185

O quarto da Aninha, nossa babá, era um bastião ecumênico, enclave brasileiro no nosso lar

Na casa dos meus pais judeus, não celebrávamos o Natal. Mas o minúsculo quarto da Aninha, nossa babá, era um bastião autônomo e ecumênico – um enclave brasileiro na Jerusalém do nosso lar

Algumas vontades são invisíveis e silenciosas como um passageiro clandestino. Só quando, de repente, elas se manifestam na consciência percebemos que estiveram conosco, incógnitas, a vida inteira.

Ontem passei por uma esquina aqui em Londres onde vendiam árvores de Natal e senti um forte aperto no coração. Natal, infância, Brasil, São Paulo… Um impulso fez com que parasse o carro e comprasse o pinheirinho importado de um bosque sueco. Fiquei muito feliz. Sempre quis ter uma árvore de Natal, mas ainda não tinha percebido. A maior vantagem do Natal é poder ser piegas sem culpa.

Na casa dos meus pais, quando era criança, não celebrávamos Natal porque somos judeus. Mas o minúsculo quarto da Aninha, nossa babá, no fundo do quintal, era um bastião autônomo e ecumênico – um enclave brasileiro na Jerusalém do nosso lar. Lá valia tudo, até macumba. Todos os anos montávamos árvore de Natal com direito a Papai Noel, presépio, manjedoura e Menino Jesus. Me confortava a ideia de que pelo menos o menino e seus pais também eram judeus.

Calcinha à mostra
A Aninha era órfã de pai e mãe e não sabia ler nem escrever aos 16 anos, quando saiu de Colatina no Espírito Santo e veio sozinha para São Paulo. Adorava ouvir os causos da sua infância na roça, do seu pai autoritário e de seus tantos irmãos. Assim como a história de Jesus, suas histórias também pareciam saídas da Bíblia, um mundo mágico que era ao mesmo tempo familiar como se fosse meu. Morria de ciúmes de um tal de Augustinho, um menino de Vitória, de quem ela tomara conta antes de vir trabalhar em casa. Me torturava pensando que um dia ela pudesse voltar para ele. Pedi pra Aninha tirar a foto do Augustinho da parede do seu quarto. Ela atendeu a meu pedido prontamente.

A Aninha sonhava com uma carreira de ator de novela ou de cantor para mim. Às vezes acho que essa foi minha primeira motivação para trabalhar com filmes. Foi ela quem me flagrou com um baseado na boca e com a primeira namorada na cama dos meus pais. Sua autoridade era silenciosa e total. Um olhar de desaprovação doía muito mais do que mil castigos.

Os anos passaram e eu mudei de país. Mas a Aninha continua tendo uma presença enorme na minha vida. Ontem cheguei em casa com a árvore, ansioso por decorá-la com meu filho. A Aninha dele é uma mineirinha de Betim que veio se aventurar em Londres com o namorado motoboy. Ela não é babá, é child-minder. Tem piercing na língua, usa calça rebaixada que mostra a calcinha, ganha R$ 30 por hora e sempre diz “tá de boa”. Ensinou para o meu filho as músicas da Turma da Mônica e faz arroz com feijão no almoço. A árvore de Natal veio lembrar que o bastião brasileiro se perpetua mundo afora.

*Henrique Goldman, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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