Música de elevação

por Ronaldo Bressane
Trip #208

Corciolli, o mago da new age que já vendeu 2 mi de discos em plena crise fonográfica

Você provavelmente nunca ouviu falar de Corciolli. Mas já deve ter escutado alguma de suas músicas, em elevadores, tendas de incenso, academias de yoga ou filmes espíritas. Conheça o mago da new age brasileira que já vendeu 2 milhões de discos em plena crise da indústria fonográfica

Morri – penso, abrindo os olhos. Pássaros cantam em felicidade transbordante, o aroma de incenso flutua no ar, estou cercado de plantas, orquídeas, flores; cães e pessoas me sorriem, fofinhos. Vestido em trajes simples, um homem de estatura mediana, olhos castanho-claros, me observa com bonomia, estendendo-me a mão. Esfrego os olhos após o rápido cochilo na sala de espera, cortesia do calor afro-paulistano, e ouço do anjo de fala lenta, modulada: “Olá! Eu sou Corciolli. Aceita um café, uma água, um chá?”, convida. É, não estou no céu, raciocino.

Meio mole com o calor, sigo o ser de luz por entre quadros de santos nas celestiais paredes. Estamos na gravadora Azul, sede do império Corciolli de música, em uma rua sossegada em um bairro arborizado da zona sul de São Paulo. Passamos pelo estoque, abarrotado de caixas com CDs; ele abre uma porta e me convida a seu cafofo. Felizmente, no estúdio o ar-condicionado sopra uma brisa divina e meu cérebro ressuscita: é o paraíso de qualquer tecladista (como este repórter), onde se destacam dois Moogs dos anos 70 e um poderoso Yamaha Motif. Chá nas veias, estou pronto para encarar um dos segredos mais descarados da música brasileira. Você certamente escutou Corciolli – e não foi no além: o multitecladista paulistano de 44 anos já vendeu quase 2 milhões de discos. Mas, se procurar informações sobre ele, não vai achar quase nada. Por que, Corciolli?

“O mainstream desconhece o gosto das pessoas”, afirma. “Anos atrás, a ioga entrou na moda e foi capa de revistas: ‘Milhões fazem ioga’. Mas os milhões não descobriram a ioga nas revistas. Do mesmo modo, existem milhões de pessoas interessadas em uma música que não toca em rádio ou TV”, explica o músico, casado, aliás, com uma professora de ioga há 16 anos. Para quebrar o paradigma, Corciolli resolveu controlar o processo da sua música do começo ao fim. Conta que, em 1992, foi ao Rio de Janeiro mostrar suas músicas à gravadora BMG. “O diretor ouviu meu som e disse: ‘Bacana, mas não existe mercado pra isso no Brasil. Desculpe...’. Nisso, a secretária dele entrou na sala: ‘Puxa, que música é essa? Que ótima! É sua? Você veio gravar?’. E saiu, deixando um silêncio constrangedor. Falei pro diretor: ‘Como não tem mercado, se acabei de vender um disco aqui?’.” Em vez de ficar baixo-astral, enquanto voltava de carro pela Dutra o músico pensava: “Posso abrir uma gravadora; mercado existe, e a indústria brasileira não viu”. Assim, à maneira do quadrinista Mauricio de Sousa, virou artista-empresário, dominando da criação à distribuição. Em 2008, a BMG foi comprada pela Sony. Hoje, a gravadora de Corciolli maneja 8 mil fonogramas e 80 artistas.

Formado em arquitetura pelo Mackenzie, Corciolli demorou a engrenar nas teclas. Sua conversão aos sintetizadores se deu ao ver um comercial dos cigarros Advance, em que uma pilha de maços caía em efeito dominó ao som de “Pulstar”, de Vangelis. Nos anos 80/90, como o instrumento era caríssimo, ele começou num modesto órgão Gambitti. Em pânico antes do primeiro show, ao ligar o órgão segurou sem querer na tomada e tomou um choque sobrenatural. Perdeu o medo de palco e virou artista. Sua banda tocava rock progressivo: os heróis de Corciolli eram Jean-Michel Jarre, Rick Wakeman, Keith Emerson. Depois da banda de rock progressivo, Corciolli descobriu Jean-Luc Ponty, Bill Evans e, a partir daí, os impressionistas Ravel e Debussy. 

Começou a acompanhar na noite o baixista Celso Pixinga e conheceu o sabor do sucesso ao tocar com o grupo de rumba flamenca Espírito Cigano, que teve o hit “Baila Manuela” inserido na novela Perigosas peruas. Mas a vida on the road não seduzia Corciolli. Depois dos shows, enquanto os colegas caíam na balada, ele subia ao quarto e mergulhava no sintetizador. “Ficava fazendo música para a alma, que me conectava com minha essência”, lembra.

A busca espiritual sempre esteve presente na vida deste filho de família católica. Foi coroinha e quase se ordenou padre. Entre os 15 e os 20 anos, interessou-se por budismo, sufismo, meditação, alquimia, espiritismo. “Fiz curso de médium, frequentei mesas brancas”, conta. Eclético, diz que tomar passes na umbanda ou acender incensos no xintoísmo são “limpezas energéticas” semelhantes à oração – e ele reza todo dia. “Fazer uma música que relaxe, ilumine, tranquilize é meu jeito de pregar: o músico é um sacerdote”, acredita. Mas não chega ao transe. “Não uso drogas, só fumei maconha uma vez e achei horrível, não creio em tomar algo para entrar em transe: é o mesmo que embebedar uma garota para transar com ela”, analisa.

Papa, gatos e cachorros

Transes e transas à parte, Corciolli se emociona com a própria música. “Quando acerto a nota e sinto-a ressoar dentro de mim, percebo o rosto se encher de lágrimas.” Ele acredita em milagres. “As Casas André Luiz [institutos de caridade espírita] me convidaram para trabalhar com crianças portadoras de deficiência cerebral em sua companhia de dança. Quando aquelas criaturas divinas, superando um esforço cerebral e físico impossível, escutaram minha música e dançaram, foi muito difícil conseguir tocar. Chorei muito, me perdi dentro desse milagre, dessa luz. Eram anjos dançando”, comove-se Corciolli, que conta ser frequente receber cartas de fãs lhe relatando como sua música os ajudou a superar um momento difícil. “Fico feliz em saber que o milagre que aconteceu com aquela pessoa teve uma pequena participação de algo que eu criei”, diz.

Depois de lançar All that binds us por sua própria gravadora em 1993, produziu o álbum Unio Mystica, inspirado em textos da liturgia católica e tratados alquímicos medievais – a obra foi lançada em vários países. No ano seguinte, gravou The new moon of East, com os monges tibetanos de Gaden Shartse. De lá para cá vieram 11 álbuns solo ou projetos como o que o uniu à revista Caras, comercializando mais de 8 milhões de CDs em bancas. Está em álbuns licenciados ou coletâneas ao lado de artistas como Vangelis, Alan Parsons Project, Enigma, Luciano Pavarotti, Kitaro, Andreas Vollenweider e Diana Krall. Seu álbum Lightwalk conta com time estelar: o percussionista Naná Vasconcelos, o baixista Tony Levin (King Crimson, Peter Gabriel), o violinista Marcus Viana e o vocalista André Matos (Angra).

Corciolli é também autor das séries “Relaxing your cat” e “Relaxing your dog”

Dois anos antes do estrondoso sucesso do filme Nosso lar, lançou um CD inspirado no livro homônimo; seguiu no campo espiritualista com a trilha do ghostbuster, digo, blockbuster O filme dos espíritos. Além de álbuns feitos especialmente para o uso de cromoterapia e aromaterapia, Corciolli não produz só para humanos deste ou do outro mundo: é autor das séries “Relaxing your cat” e “Relaxing your dog”. Entre discos e compilações de que participou, organizou ou arranjou, somam-se quase 150 obras diferentes vendidas em mais de 40 países. Seu hit é “Oratio”, tocado na novela Essas mulheres, da Record, mas seu maior orgulho foi ter o primeiro álbum ouvido no Vaticano. “Minha música recebeu a benção de Sua Santidade o Papa João Paulo II.”

Copyright ambiente

A fala narcotizante de Corciolli, em tom muito doce e aveludado, sofre um abalo quando o repórter, talvez inebriado pela atmosfera de confissão, revela um pecado: pirateou sua música da internet. “Você vai falar pra um dono de gravadora sobre baixar música?”, fecha a cara o tecladista, o rosto avermelhado revelando o sangue siciliano. “A facilidade e a impunidade fazem com que as pessoas achem válido ‘baixar’, quando não é. Na música independente você vê um montão de gente com dificuldade para ganhar dinheiro”, exaspera-se, emendando longa pregação contra os milionários donos de sites como Rapidshare e Megaupload. Mas, se a indústria está no limbo, se os proprietários de sites de compartilhamento não passam de espíritos obsessores e os músicos independentes são almas penadas em busca de luz, que fazer para combater esse satânico status quo?

Já com o tom de voz moderado, Corciolli tira a pele de músico e veste o hábito de empresário ao apresentar sua engenhosa solução, que passa pela arrecadação de direitos autorais fora da radiodifusão na mídia de massa (TV, rádio). Sua iluminação foi perceber que a música é consumida principalmente em ambientes sonorizados: perdeu a conta das vezes em que entrava em uma tenda de incensos ou em uma academia de ioga e estava tocando Corciolli. “Se o consumidor se sente bem em uma loja por conta da música ambiente e gasta mais, o músico deveria receber seu quinhão”, prega. A ideia de Corciolli é propor ao Ecad que, no caso de ambientes sonorizados, o compositor abra mão dos direitos autorais para passar a faturar direto dos lugares que usam suas músicas: a proposta é vender um estudo de percepção sensorial para obter uma remuneração justa para os artistas, cobrando a música ambiente através de assinaturas. “Propomos um sistema que oferece a reprodução de música ambiente, cobrando das empresas por um playlist personalizado para seu espaço. Assim valorizamos o artista independente e todos ganham”, explica.

De volta à música, Corciolli revela estar criando trilhas sonoras para dois filmes. A fórmula é a mesma, como diz: o crossover, uma new age do anjo doido, que funde harmonias celtas, árabes e orientais com cantos gregorianos e mantras budistas, tudo sob percussões africanas e sob densas e épicas orquestrações. Bom de business, Corciolli prefere declinar o nome das películas apenas depois que assinar os contratos. Despede-se presenteando o repórter com alguns CDs, um deles só de clássicos convertidos em canções de ninar. Ao atravessar a rua, o repórter, em estado de levitação, é quase atropelado – e ouve do motorista: “Tá morrendo em pé, ô mané?”. Vai saber.

Clássicos da nova era

. Enya é a artista de new age mais famosa do mundo. A mezzo-soprano e compositora irlandesa surgiu no fim dos anos 80 com o álbum Watermark. Já vendeu 75 milhões de cópias com canções armadas sobre camadas de vocais brumosos (sua ampla tessitura a permite sobrepor até 80 vozes), melodias folk, sintetizadores flutuantes, reverberações etéreas. Mora em um castelo celta, é uma das artistas mais ricas do planeta e um asteroide tem seu nome: o 6433 Enya. Compositora de trilhas para filmes como O senhor dos anéis, uma canção sua surge em Millenium, de David Fincher – mas aqui, com óbvia intenção irônica.

. Filho do grande trilheiro Maurice Jarre, o francês Jean Michel Jarre é pioneiro no uso espetacular dos teclados – é famoso por um piano circular cujas teclas se iluminavam ao toque de suas mãos mágicas. Multi-instrumentista e também pintor, vendeu mais de 80 milhões de cópias, tocou com Laurie Anderson, Marcus Miller e Adrian Belew, foi o primeiro artista ocidental a tocar na China e fez os três shows mais assistidos do planeta – em 1997, tocou para 3,5 milhões em Moscou. Namorou Isabelle Adjani, foi casado com Charlotte Rampling e, ano passado, recebeu a medalha da Legião de Honra. Também teu seu asteroide, o 4422 Jarre.

. Mais influente compositor de new age e inspirador de variados subgêneros da música eletrônica, Vangelis é conhecido pela clássica trilha sonora de Blade runner, de Ridley Scott, e ganhou um Oscar pelo assobiável tema de Carruagens de fogo. Começou nos anos 60, fazendo rock psicodélico, e já gravou 52 álbuns, além do tema da Olimpíada de 2002, da trilha da missão espacial da Nasa em Marte e do sound environment do evento Aliança das Civilizações, que reuniu os principais mandatários do mundo em Doha, em 2011. Também pintor, pouco se sabe de sua vida pessoal – obcecado por viagens pelo mundo, desconhece-se em que país vive hoje. Tem, claro, um asteroide pra chamar de seu, o 6354 Vangelis.

. O multitecladista japonês Kitaro veio ao mundo com “Astral voyage”, hoje objeto de culto. Diz que sua música nasce no céu: “Ela apenas surge através de meu corpo”. Dentre dezenas de discos, sua obra-mestra é Ku Kai, em que utiliza samples de 88 sinos de templos japoneses em 88 canções (o piano tem 88 teclas). Compôs para filmes de Zhang Yimou, tocou com Vangelis, Mickey Hart (Grateful Dead), Marty Friedman (Megadeth) e Jon Anderson (Yes), foi casado com a filha de um dos maiores chefões da Yakuza e hoje vive confortavelmente com a segunda mulher, também música, em um rancho na Califórnia, onde espera que os cientistas da Nasa batizem algum asteroide com seu nome.

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