Musa inspiradora

Luiz Mendes: ”Senti na alma a necessidade de ter outras pessoas por perto”

Estive aprisionado nas masmorras mais isoladas deste país. Senti na alma a necessidade de ter outras pessoas por perto. Amar uma mulher passou a ser um nobre objetivo. Ela traria em si um novo e imprevisível futuro

“A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer; briga pensando em não mais voltar.” Desde que eu soube o tema desta edição da revista, essa música de Jair Amorim não me sai da cabeça. Acho a letra de uma clareza absoluta. O autor foi muito feliz ao desenvolver o tema. Devia estar de fato vivendo as emoções que poetizou.

O passado é um campo de recordações e de nostalgia. A cada encruzilhada do tempo, uma nova escolha, e então um leque de possibilidades se abre à nossa frente. O futuro aparece como um feixe de projetos e esperanças. E tudo indica que somos uma tarefa a se realizar, um infindável reservatório de futuro. O presente é a fronteira entre os dois. O teatro onde se realiza a metamorfose. Uma história a ser feita que não pode ser apenas o prolongamento da história que já se fez. E é nesse contexto que nós brigamos, nos desentendemos – e, na maioria das vezes, por orgulho ou estupidez. Brigamos no presente, choramos um passado e complicamos nosso futuro.

Minhas emoções trouxeram uma brecha na couraça de minhas certezas. Sou por elas responsável, mas tudo continua sendo estranho, como se não fosse comigo. Elas me conduzem ao que há de mais desnorteante e misterioso em mim. O infinito desconhecido, essa riqueza que, de tão imensa, pressiona, desafia e enche de medo. Uma multiplicidade de possíveis que sinto que só são meus na medida em que me apaixono por eles. Eles me conduzem ao amor. Amor ao que faço, ao que idealizo e anseio realizar. Amor a uma mulher, esse outro olhar, esse conflito e, no fundo, essa dimensão perdida de mim mesmo.

“O inferno são os outros”, diria o herói de Sartre em sua peça teatral. Há momentos nesse conflito que fazem a convivência do amor parecer o inferno descrito por Dante. Outros em que a satisfação é tão imensa que tem a cara do céu ou do paraíso prometido. A felicidade é tamanha que chega a nos engolfar; dá até dor de barriga. Mas, da minha experiência pessoal, a vida é antes de tudo trabalho, dedicação e empenho. Porque nós não nos adaptamos ao meio em que fomos colocados, precisamos modificá-lo. Não estamos em equilíbrio com a natureza. Nossa vida é construção, e a convivência amorosa é produto da vontade de cada um.

Inferno são os outros

Estive aprisionado nas piores masmorras isoladas desse país. Senti na alma a necessidade das outras pessoas. Elas me faziam mais falta do que a alimentação. Sentia como se estivesse deixando vazar a substância mais valiosa da minha existência. Lia e relia aquelas letrinhas minúsculas da pasta de dentes e do sabonete. Eram as únicas coisas que me era permitido ter naquelas celas infectas. O conteúdo era industrializado, mas aquelas letras eram a única presença humana que me restava. Havia o humano impregnado naqueles signos. Foi quando descobri que o inferno, na verdade, é a ausência dos outros. Havia errado, sim, e errado muito. Mas não havia assinado contrato com o erro; sabia que um dia acertaria. Pensar, sem dúvida, é revolução. Criei coragem e comecei a mudar a história de minha vida.

Amar uma mulher, então, passou a ser um nobre objetivo, porque percebia na mulher uma nova dimensão. A companheira traria em si um novo e imprevisível futuro. Mas nem sempre consegui manter essa firmeza de pensamento, embora sempre tenha conseguido discutir e brigar. Creio que devo ter encontrado a pessoa em especial para amar. Mas algumas conjunturas minúsculas assumiram dimensões de enormes mastodontes. As brigas se sucederam, e eu me perdi de mim, dela, de meus objetivos e não soube lidar com isso. E assim a oportunidade de um encontro real foi vazando sem que eu conseguisse deter. O mais difícil é que sobrevivo à solidão, mas não consigo me acomodar a ela.

“Briga pensando que não vai voltar, eu tive orgulho e tenho por castigo a vida inteira para me arrepender. Se eu soubesse aquele dia o que sei agora, eu não seria esse ser que chora, eu não teria perdido você...” E assim termina a música que Jair Amorim fez para sua musa, Maria Helena de Abreu.

*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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