Sesc Pompeia exibe mais de seis mil brinquedos desde a década de 1930 até hoje
Quer melhor presente de aniversário do que brinquedos? É com eles que o Sesc Pompeia comemora seus 30 anos, na exposição Mais de Mil Brinquedos para a Criança Brasileira. O evento homenageia a mostra homônima (e a primeira da unidade) organizada em 1982 pela arquiteta Lina Bo Bardi, que assina o projeto do Pompeia. Serão exibidas mais de seis mil peças artesanais e industriais de diferentes regiões do mundo, representando a infância desde a década de 1930.
Conversamos com Gandhy Piorski, um dos curadores da mostra. Artista e pesquisador do lúdico na cultura popular brasileira, ele comenta as escolhas para a exibição que tomou ao lado da colega Renata Meireles e destaca a necessidade de valorizar os brinquedos feitos à mão – seja por artesões seja pelas próprias crianças. E defende a importância de ouvir o que a criatividade da infância diz ao mundo: “A cultura sempre diz o que a criança tem que fazer. Os educadores sempre têm respostas e teorias afirmadas sobre o que é melhor para acriança. Mas o exercício de expressão da criança, isso raramente foi passado através dos tempos”.
Trip. A exposição é uma homenagem à mostra que Lina Bo Bardi realizou no SESC em 1982. Como vocês estão dialogando com o passado?
Uma parte do acervo da época deixou de existir, porque o SESC doou uma grande quantidade de brinquedos que recebeu de indústrias. Outra parte se perdeu, mas ficaram outros que eram mais artesanais. A visita ao que restou foi o ponto de partida para começar nossa leitura. Observamos com atenção muito especial a qualidade do brinquedo da época em que foram coletados. Havia peças muito bonitas e trabalhadas, com características bem vivas do que era o artesanato de brinquedos nos anos 80 no Brasil. isso foi muito peculiar, foi o que saltou aos olhos da gente. Nessa época, o artesanato de brinquedos era uma coisa muito intensa nas feiras do interior de São Paulo e no nordeste. Muitos artesãos estavam no vigor criativo. Tem outro ponto que chamou atenção. A Lina quando expôs os brinquedos trouxe o artesanato para um patamar igual ao dos brinquedos da indústria, que, diga-se de passagem, tinha designers produzindo e criando. A Estrela funcionava a pleno vapor e tantas outras, com pessoas desenhando, o que não existe mais com tanta frequência hoje em dia.
Isso porque as ideias de brinquedos são cada vez mais importadas?
Isso. E os designers hoje normalmente pegam personagens do cinema e redesenham pra produção de bonecos e brinquedos em geral. Não tem mais aquela coisa de pensar um produto inteligente, que tenha aspectos mais apropriados à construção e criatividade da criança.
Imagino que perdemos muito com essa mudança.
Sem dúvidas. Hoje ainda há brinquedos bons, como o Lego ou linhas mais específicas, que não existem no grande mercado. Mas são caros.
Falando em preço, como está o mercado artesanal atualmente?
Está restrito a pequenas áreas do brasil. Em São Paulo, mesmo, existe uma loja, a Fábrica de Brinquedos. Eles têm um trabalho de ligar artesãos que produzem boas peças, estimulam a criação para que possam vender. Ou também compram na Europa, vão buscar um mercado mais inteligente. No Nordeste ainda existem artesãos, no interior de São Paulo também, mas isso está pulverizado. E há pouco espaço em um mercado como este, em que a indústria massiva de brinquedos está ligada a figuras da mídia. Além disso, é muito difícil um brinquedo de artesão passar nas categorias de segurança do Inmetro. O Inmetro é um órgão que metrifica a experiência do brincar e não entende nada de criança.
Fica preso naquela coisa de que pode soltar pecinhas...
Exato. Tem normas de segurança compreensíveis para a sociedade em que a gente vive, na relação de comercio das indústrias. Mas penaliza uma linha artesanal de produção que tem historia no Brasil.
No processo de revisitar a mostra da Lina e analisar o que está sendo produzido atualmente, é possível identificar mudanças no modo de brincar das crianças brasileiras?
Há algumas mudanças. A ótica que nos quisemos inserir na exposição tentou ir além do que a Lina fez, de trazer o artesão pro mesmo patamar do designer. Trouxemos outro elemento para a mostra que foi a produção das próprias crianças, que são quem na verdade inspira o artesão e o designer. Isso é muito claro na historia do brinquedo, muitas invenções artesanais que chegaram ao patamar de industriais vieram da inspiração que o artesão soube ver na criança. Consideramos esse um elemento chave, elas são muito criativas dentro desse universo do brincar, da inspiração. Voltando à pergunta, estou querendo dizer com isso é que esse discurso de que as crianças não brincam mais é mentira. É um discurso institucionalizado. Na verdade, as crianças continuam brincando e construindo muitos brinquedos. Talvez nos grandes centros urbanos, numa classe social específica, isso esteja mais prejudicado. Mas nas periferias, no interior do Brasil, as crianças continuam criando brinquedos. Existe aí, sim, um brincar da criança que a gente quer discutir. Por isso desconstruímos o brinquedo nessa mostra, muitos estão abertos. A gente mostra o avesso do brinquedo, como é por dentro. E a relação de construção, o interesse que a criança tem em animar o brinquedo, desmontar, conhecer os mecanismos pra brincar.
Qual a diferença entre o brinquedo que a criança constrói e o que ela consume pronto?
Acho que a principal característica é que a criança, quando constrói para brincar, estabelece uma relação diferente com todo o resto diferente de quando ela consome para brincar. Construir para brincar tem um nível de valoração sobre a relação com o mundo e de apropriação do mundo muito mais significativa do que consumir pra brincar. Claro que existem brinquedos que têm níveis de exploração e apropriação bem significativos, que mostram que é possível criar sempre para brincar e não necessariamente ter que consumir o brinquedo pronto – mas consumir objetos que dão o poder de criação.
O que a criança tem em mente quando cria um brinquedo?
Uma das diferenças é que no que a criança produz a partir do universo dela existe muito mais expressão e ampliação da capacidade imaginativa. Um brinquedo comprado pronto miniaturaliza a realidade, emoldura a experiência de criação. É claro que uma Ferrari de brinquedo que imita a realidade é muito sedutora. E a criança quando brinca com ela tem experiências, claro. Mas quando constrói o próprio carrinho, com todas as limitações da técnica, da lata, do prego, do martelo, quando recorta a lata com tesoura, é claro que a vinculação é muito mais profunda porque existiu ali todo um esforço criativo de trabalho manual e de exercício próprio do que em relação ao carrinho pronto. É bem significativo. As pessoas às vezes dizem que as crianças são preguiçosas, que só querem ficar em frente à televisão o dia todo, não têm mais pique pra construir. Mas coloca uma criança num celeiro cheio de ferramentas e objetos para ela construir brinquedos para ver qual é a relação corporal e criativa que ela tem com aquilo.
É triste que essa experiência seja podada. E raramente percebo ambientes fora da escolinha estimulam essa relação de criatividade com o brinquedo.
É verdade. Muitas escolas hoje estão discutindo isso e tem um ponto que é muito importante. Existe, claro, toda uma expectativa que os pais depositam na escola, nos centros culturais, parques. Mas em casa, a partir do esforço dos pais, é possível criar esses ambientes criativos e construtivos. Na verdade, existe hoje um delegar da educação. A grande maioria das famílias, pelo pouco tempo e disponibilidade que exige a educação dos filhos, está delegando essa responsabilidade a terceiros, porém é possível, sim, trazer a relação de criação e a experiência construtiva na própria casa. Mas isso é cada vez mais cerceado, nas famílias e nas grandes cidades e impõe uma necessidade de esforço e mudança de cultura.
"Normalmente a gente percebe o que a cultura diz para a criança e sobre a criança. Esse é um ponto que a gente abre na mostra: o que a criança está dizendo pra cultura?"
É possível traçar uma sociologia do brinquedo? Quer dizer, o que nossos brinquedos dizem sobre nós, brasileiros?
Sim, é possível se traçar uma geografia. Uma sociologia. Uma antropologia. Uma botânica do brincar. Em cada nicho geográfico, cada experiência que se estabelece com a natureza, é possível se perceber o dizer da criança, um traço da fala própria, do que ela tem a dizer sobre ela própria e sua relação com o mundo. Normalmente a gente percebe o que a cultura diz para a criança e sobre a criança. Esse é um ponto que a gente abre na mostra: o que a criança está dizendo pra cultura? Dividimos a exposição em ambientes que tratam de temas específicos. Logo na entrada tem o “mínimo e as mãos”, que é a relação com miniaturas, das pequenas coisas. Aí a gerente aborda que, pela plástica dos objetos, existe um interesse em criar intimidade com o mundo, em se enraizar na vida social. Não só para imitar, as para poder trazer seus próprios conteúdos para a cultura. Colocamos casinhas, fazendinhas de todo tipo, inclusive de ossos de boi, em que as crianças entram na anatomia da natureza. Elas vão nas ossadas e tiram vértebras dos bois para fazer fazendinhas, aí existe toda uma investigação da criança sobre a anatomia da natureza, sobre o dentro do mundo. Há um interesse na substância do mundo. Tudo isso é exercício da imaginação, empurrando a criança para investiga e fazendo com que ela diga o interesse dela pelas coisas. Quando a criança pega o brinquedo e quebra, não existe aí uma hiperatividade da criança, e sim a vontade de conhecer o que está dentro. Isso já denota uma metafísica na criança.
O que é um conceito avançadíssimo, que a maioria dos adultos perde ao longo da vida.
Exatamente. Existe aí todo um estudo que a gente pode fazer do abandono da infância, que vem de muitos séculos. A cultura sempre diz o que a criança tem que fazer. Os educadores sempre têm respostas e teorias afirmadas sobre o que é melhor para acriança. Mas o exercício de expressão da criança, isso raramente foi passado através dos tempos. Existe um percurso de abandono da criança, por achar que ela é uma pagina em branco e nos é que dizemos o que ela tem que ver.
Uma concepção totalmente racionalista, infelizmente. Para fechar: é possível descobrir o que a criança brasileira de hoje quer comunicar ao mundo através dos seus brinquedos? Existem uma ou duas frases capazes de resumir essa ideia?
Não sei quais seriam essas frases, mas acredito que as crianças têm comunicado para o mundo que existe uma individualidade de cada uma dela. É preciso estudá-las como seres individuais, e não massificar um sistema de ensino. Cada criança tem sua experiência própria, sua sensibilidade e seu nível de relação e aprofundamento com o universo em que vive. Acho que esse é o dizer mais significativo: “Nós temos individualidade. Nós temos conteúdo. Nós queremos dizer o que parte de nós e não só o que a cultura e a educação querem nos imprimir”.
Vai lá: Mais de mil brinquedos para a criança brasileira – Sesc Pompeia, r. Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP, (11) 3871-7700. De 9/7 a 2/2/2014, grátis