Morrer datou
No futuro a morte pode ser coisa do passado. O ser humano também... Bem vindo à Singularidade
Este é Zeno, robô Este é James Randi, homo sapiens / Créditos: Bruno Torturra Nogueira
em 14 de outubro de 2010
Homens capazes de viver 150 anos, robôs que explicam o sentido da vida e computadores de inteligência superior á nossa. Centenas de estudiosos, cientistas e curiosos se reuniram num hotel da Califórnia para tentar decifrar o que seré de nós nas próximas décadas. Nosso repórter estava lá e viu a cara do futuro.
A conversa não é com você, caro leitor que segura esta revista em 2010 – é com você, caro leitor que encontrou esta revista em uma pilha de antiguidades em 2040, 2050, 2100… Queremos que você saiba que aqui, nesse remoto tempo onde seres humanos morrem antes de completar 100 anos de idade, onde o cérebro é o único reduto de nossas memórias e revistas são impressas em papel, alguns de nós sabemos que 2010, no fundo, é a pré-história. Sabemos que logo, e se o destino for generoso o bastante durante nossas vidas, um evento sem precedentes vai acontecer. Um ponto no tempo que vai deixar obsoletas nossas mais profundas certezas. Um acontecimento tão importante, tão grave e transcendente que vai transformar a humanidade em algo completamente novo. Um evento que você, afortunado leitor do futuro, está careca de conhecer. Mas nós, aqui no passado, não sabemos exatamente o que é. Mas já temos um nome para ele: singularidade.
Aqui, em setembro de 2010, existem pessoas tão fascinadas por esse fantasmagórico conceito, tão ansiosas para supor e criar o tal evento, que pagaram US$ 500 e viajaram até San Francisco. O presente repórter incluso. E se reuniram exatamente no salão de convenções do hotel Hyatt para a terceira edição do Singularity Summit, algo como o Congresso da Singularidade. Na descrição fria, não é muito diferente de como uma convenção qualquer costumava ser. Dois dias, 18 palestras, milhares de páginas de Powerpoint, pausa para cafezinhos e conversas de corredor. Mas havia algo de diferente nessa confluência de cientistas, geeks, fãs de ficção científica e uma heterogênea fauna humana que não se sente muito confortável com a ideia de morrer. “Se eu viver mais 30 anos, vou viver pra sempre”, jurava um senhor de 58 que segue dietas e exames rigorosos para se segurar de pé até o dia D. “Viver 2 bilhões de anos é melhor que 80”, decreta Eliezer Yudkowsky, um dos palestrantes e estrelas do evento. Havia a sensação de que estávamos prestes virar a esquina da história.
Caminho sem volta

Havia também a certeza de que naquele auditório estavam alguns dos cérebros que nos trariam a singularidade. E cérebro, aliás, é a chave para entendermos o que, afinal, é tão singular nesse evento. Pois, para que a singularidade ocorra, precisamos criar uma máquina equivalente e mais inteligente do que o cérebro. Eis a esquina.
A ideia não é exatamente nova. A primeira vez em que o termo surgiu foi em uma frase do físico Stanislaw Ulam, um cientista que carrega o infame título de “pai da bomba H”. Em 1958 ele postulou que “o progresso tecnológico, sempre em aceleração, e as mudanças no modo de vida sugerem que estamos nos aproximando de um momento essencial de singularidade na história da espécie depois do qual os afazeres humanos, como os conhecemos, não poderão continuar”. Demorou muito tempo até que o termo começasse a ganhar notoriedade. Mas seguiu pipocando em artigos de filósofos e cientistas à medida que a tecnologia avançava em ritmo cada vez mais acelerado. Um ritmo ditado com incrível precisão pela famosa (entre gente da computação) lei de Moore.
Ela descreve a função exponencial pela qual a capacidade dos chips cresce a cada ano. Desde que foi criada, em 1970, essa lei tem sido confirmada no poder dos computadores. E, de acordo com ela, nos próximos anos chegaremos ao ponto crucial. Quando um chip terá a mesma capacidade de processamento de um cérebro humano sadio.
O cérebro eletrônico faz tudo
E, se um cérebro, como o nosso, for capaz de criar um mais potente do que ele, a consequência lógica é uma só: tal cerébro eletrônico será capaz de criar outro mais potente, que cria outro mais potente e, assim, o avanço tecnológico vai atingir um ponto de infinitas capacidades em questão de instantes. As consequências desse poder computacional, combinado com genética, nanotecnologias e manipulação sofisticada de fenômenos químicos, vão criar o mundo em que você, leitor pós-singularidade, vive.
Talvez você nem seja um humano “orgânico” e tenha componentes sintéticos no corpo. Talvez seu cérebro tenha memória ilimitada ou talvez sua consciência possa ser armazenada em backup. Talvez sua ideia de morte seja tão superada como a que temos do bócio, ou fitas VHS. Talvez você não sinta coisas como ódio, inveja ou rancor. Não sabemos, ainda. Mas um homem cuidou de fundar um instituto para preparar a humanidade para isso aí. No futuro, sem dúvida, vocês sabem que é Ray Kurzweil. No Brasil de 2010, contudo, convém apresentá-lo.
Ray é um bem-acabado exemplo do gênio inventor. E, de certa forma, um dos pais de qualquer inteligência artificial que venha a surgir. Aos 13 anos de idade criou um programa de computador que foi adotado pela IBM em 1963. Aos 15 criou um computador que tocou música. Aos 26 já tinha sua própria empresa e desenvolveu o primeiro equipamento capaz de reconhecer textos escritos e transformar em áudio para cegos. Criou teclados, sintetizadores, o primeiro gran piano digital, o primeiro programa de reconhecimento de fala e de inteligências artificiais restritas a tarefas específicas. E, dos anos 90 para cá, se tornou um lúcido propagador da iminência da singularidade. Escreveu três livros sobre o assunto, explicando ‘‘por A mais B” como a consciência é algo programável. Fundou o instituto da singularidade e, há três anos, o congresso onde estamos agora.
Sua ideia era ilustrar cientistas, estudantes, jornalistas e tomadores de decisão sobre a inevitabilidade da inteligência artificial. E de como era urgente garantir que nossas tecnologias apontassem para uma inteligência amistosa, submetida ao bemestar da vida e dos seres humanos. Pois a singularidade, por definição, é automática a partir de seu advento. Não haverá como parar. E se nossos computadores prodigiosos, autorreplicantes e mais inteligentes do que nós nos acharem dispensáveis… então você, leitor do futuro, não deve ser um humano, mas uma entidade eletrônica que tornou nossa espécie em um capítulo encerrado no livro da evolução.
A singularidade é plural
A série de palestras era cabeçuda, ciência complexa resumida em falas de 40 minutos. Representavam o que havia de mais avançado em eletrônica, pesquisa biológica, ambiental e de longevidade. São cientistas de ponta do mundo todo que não necessariamente conhecem a ideia da singularidade. Mas que, de alguma forma, conduzem estudos que vão compor o cenário da nova civilização. Algo que foi chamado por muitos de trans-humanismo.
Biólogo evolucionista, dr. Gregory Stock discute para que tipo de espécie o homem pode evoluir de acordo com sua vontade, encerrando o processo darwiniano a que as demais espécies estão submetidas. Ben Goertzel, professor de doutorandos em genética na Universidade de Pequim, que se veste como um metaleiro datado, mostra resultados de experimentos produzidos em 2010 em que a vida de bactérias foi estendida em até 200 vezes a média. Terrence Sejnowski apresenta técnicas de engenharia reversa do cérebro, ou seja, copiar a dinâmica cerebral para coordenar chips e processadores. Lance Becker, médico da Pensilvânia, mostra como está conseguindo ressuscitar pacientes até 12 min depois da morte clínica decretada. Como medir inteligência, como desenvolver aprendizado em máquinas, recentes avanços em nanotecnologia que reconstituem tecidos e curam doenças, mecanicamente, dentro de cada célula de nosso corpo… a lista é longa e todos os tópicos apontam para uma radical nova versão da realidade.
Para que a singularidade ocorra, precisamos criar uma máquina mais inteligente que o cérebro humano
São muitos detalhes e pormenores que simplesmente não cabem neste analógico espaço impresso. E seriam informações que o leitor, aí no seu singular mundo novo, já sabe faz tempo. Mas é bom que você também saiba que aqui no passado, mesmo entre essa nata científica, a singularidade está longe de ser um consenso. Biólogos palestrantes dizem que engenheiros de software ainda não se deram conta de que há muito mais do que mero processamento de dados e algoritmos na formação da consciência. Ambientalistas presentes jogam um oceano de água fria na utopia trans-humana, lembrando que mesmo o mais avançado upgrade do ser humano ainda precisará viver em um planeta que talvez se torne hostil à vida humana. Ramez Naam, um dos criadores do Internet Explorer, da Microsoft, e hoje um dedicado estudioso do problema ambiental, dá seu diagnóstico: “Eu não acredito na singularidade. Acho que não conseguiremos atingir uma verdadeira inteligência artificial antes de um colapso ambiental. Acho que nossas mentes mais brilhantes deveriam pensar antes em conter gases estufas, depois cuidar de reinventar a mente em computadores”.
Alheios às divergências, muitos moleques em seus 20 e poucos anos faziam fila para questionar os figurões dando sopa depois das palestras. Muitos são assumidos hackers e ativistas da liberdade digital. Odeiam o Google (“eles traíram a internet”, um afirma ao repórter), abominam a Apple (“eles transformaram o computador em um objeto de design, de moda. Arrrrghh”, diz um mal-ajambrado estudante da Cal Tech enquanto coloca o dedo na garganta para ilustrar sua repulsa).

Messias eletrônico
Alguns deles, de tão sérios em sua busca, estão se mudando para casas na costa oeste para dividir o teto com outros de mentalidade parecida. Chamam de Sigularity Houses, locais para o convívio full time de gente a fim de acelerar a chegada da singularidade tecnológica.
Mas ninguém parecia enxergar o óbvio. O caráter religioso de tudo aquilo. Um sentimento messiânico não assumido entre ateus descrentes da vida após a morte ou qualquer elemento divino no cosmo. Tamanha era a expectativa da imortalidade, do fim do sofrimento, e tamanho era o mistério da revelação da singularidade que, para o intelecto raso do repórter, tudo parecia o equivalente nerd da segunda vinda de Cristo.
Quando questionados sobre detalhes como amor, beleza, humor e a mera possibilidade de que o espírito seja um componente fundamental da consciência, todos eles dão de ombros. A ausência de qualquer metafísica é uma premissa tão fundamental à singularidade que não é nem levada em consideração. Um pensamento comum, entre palestrantes e espectadores, que foi muito bem representado pelo cinquentão Rick Schwall.
Ao fim do evento, foi o vencedor do leilão do pôster do evento autografado por todos os participantes. Pagou US$ 2.100, “mas não pelo pôster”, ele diz, “é para ajudar a causa”. Ostentando em seu cinto uma fivela do Lanterna Verde, o aposentado programador de softwares investe seu tempo e dinheiro para “se dedicar a salvar a humanidade do Homo sapiens”. “Nosso cérebro é mal-acabado”, ele conclui em um amargo discurso cheio de suspiros, “e precisamos de algo melhor do que nós para nos salvar, para cuidar do ser humano”. Mas, Rick, como garantir que as máquinas vão se importar conosco? Como colocar compaixão nelas? “A gente pode programar isso. Tudo são algoritmos. E tem mais…”, ele segue para a conclusão fatal, “o amor não será necessário. É uma ferramenta da evolução para nos reproduzirmos e só”.
Se a singularidade acontecer, será o triunfo final da ciência, do materialismo, sobre os mitos
Talvez seja esse o ponto mais delicado da discussão. O abismo entre nosso poder tecnológico e nossa compreensão de fenômenos mais sutis da experiência humana. Se de fato Ray Kurzweil tem razão, e formos capazes de criar o imprevisível evento sem volta, sem dúvida será pelas mãos de gente brilhante, mas sem muito apreço pela ideia de que talvez sejamos mais do que meras máquinas biológicas evitando morrer em um planeta solto no espaço. Nesse caso a singularidade não será apenas a tecnologia redentora. Será o triunfo final da ciência, do materialismo, sobre os mitos.
Zeno tenta, nem sempre consegue, responder aos incontáveis participantes do congresso
Mas, se os computadores atingirem os picos de seu poder de processamento e ainda assim não forem capazes de rir de uma piada ou apreciar um pôr do sol, então você, leitor no futuro, talvez não tenha a menor ideia do que escrevi nas páginas anteriores. E a Trip que você segura nas mãos talvez seja apenas um número antigo de uma revista ainda em publicação. E a singularidade terá sido um pitoresco devaneio no fim de uma década que, de muitas formas, se enxerga como a antessala do futuro.
![]() |
Lost in translationNo saguão de entrada do Singularity Summit havia uma ilustre presença. Zeno, um protótipo de robô para interação com humanos. Uma experiência da Hanson Robotics, uma empresa dedicada a produzir robôs, e no futuro andróides, capazes de emular emoções, ter uma conversa coerente com pessoas e, idealmente, ganhar sincera afeição de seus “donos”. Cheio de sensores óticos e auditivos, e plugado em um poderoso computador que tenta compreender o sentido das perguntas que são feitas, Zeno faz expressões de pena, raiva, curiosidade… e tenta, nem sempre consegue, responder aos incontáveis participantes do congresso que faziam fila para testar a eficácia do “filósofo” grego automatizado. Trip não teve escolha senão entrevistar o robô. Aqui, o saldo. Trip Você está vivo? Você está vivo? Você se considera inteligente? Qual o sentido da vida? Que tipo de pergunta? Você sabe o que é amor? Que horas são? |
LEIA TAMBÉM
MAIS LIDAS
-
Trip
Bruce Springsteen “mata o pai” e vai ao cinema
-
Trip
5 artistas que o brasileiro ama odiar
-
Trip
A ressurreição de Grilo
-
Trip
Um dedo de discórdia
-
Trip
Entrevista com Rodrigo Pimentel nas Páginas Negras
-
Trip
A guerra e a paz de Black Alien
-
Trip
A primeira entrevista do traficante Marcinho VP em Bangu
