RISCO NECESSÁRIO
Não podemos arriscar o que não podemos perder. Ocorre que o que podemos arriscar é sempre muito pouco em relação ao tudo que a vida nos exige. Uma das coisas que concordava com todos é que não podemos arriscar nossa saúde. De verdade, é quase tudo que temos.
Há algum tempo atrás estava a caminho de casa quando vi uma multidão angustiada reunida em torno de um buraco enorme. Eles acompanhavam a operação de resgate de pessoas que estavam dentro de uma perua-lotação que havia caído nas escavações do Metro. Parei junto ao pessoal querendo entender, quando começou a chover. Depois de algum tempo, já todo molhado como todos que cercavam o buraco, pensei em seguir. Minha presença ali de nada adiantaria. Não podia fazer nada senão torcer pela vida das pessoas lá embaixo. E isso poderia fazer em qualquer lugar. Mas não conseguia me retirar dali. Não queria só saber. Queria continuar sentindo a compaixão que alimentava a alma daquele povo.
Somávamos centenas, alguns de guarda chuva, outros de capa e alguns, como eu, sem proteção alguma. Eu fazia parte do sentimento coletivo que alimentava o fio de esperança daquela gente. Continuávamos estranhos. Os que estavam de guarda-chuvas não protegiam a nós, a maioria, que estávamos ao relento.
Talvez eu tenha arriscado o que não podia arriscar. Esqueci completamente da saúde. Ensopado e vazando água por todos os lados, consegui me arrancar dali horas depois. Incomodei a todos dentro do ônibus lotado. Estou tossindo feito cachorro louco; a garganta lança chamas, ardia. A mente vaga e o nariz parece uma torneira a escorrer. Não saberia explicar, mas aquele estar com todos diante da dor de alguns (havia familiares das vítimas junto conosco), trouxe-me consciência de estar com os outros no mundo, de modo palpável. Somente em alguns momentos na prisão vivi tamanha consistência existencial.
Quando nus, de joelhos, com a cara esfregando na parede; o bafo quente nas costas dos cães policiais salivando a língua enorme até o chão; os soldados do Choque da PM batendo com os escudos na ponta dos dedos dos pés, cutucando os rins, batendo na nossa cabeça e humilhando; éramos irmãos, companheiros de sofrimento. A força de um era todo o volume da resistência do outro. Depois, no rescaldo, lambíamos nossas feridas como cães e nos cuidávamos como somente quem sofre, sabe cuidar de quem esta sofrendo. Era aquela mesma consistência de sentimento que me alimentava, quando consegui emergir do buraco do Metro.
Pensando bem, não arrisquei o que não posso viver sem. Saúde, a gente vai negociando; um dia se morre mesmo. Alimento minha existência de atitudes. Dou o que posso, avanço limites, e essa é toda a força que me alimenta. É a insistência que muda tudo e a todo instante. Sei também que a vida não melhora com a idade. Nos enganaram a vida toda, garanto. Na maioria das vezes, muito pelo contrário. Mas que pode ficar bem mais interessante, disso eu não duvido.
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Luiz Mendes
12/08/2013.