Entrando no avião como um condenado à forca, entendi o porquê do melodrama da minha avó
Entrando no avião como um condenado que sobe à forca, finalmente entendi por que minha vó gritou, chorou e esperneou tanto ao pegar um voo para visitar a Polônia onde ela nasceu
Dobrando a última camisa e fechando a mala comecei a sentir um aperto na garganta -- uma vontade enorme de chorar sem ainda saber por quê. No carro, a caminho do aeroporto de Heathrow, fiquei olhando aflito para minha mulher e meu filhinho. Quis muito voltar para casa, desistir da viagem e nunca mais sair do lado deles. Tamanha angústia não obedecia a nenhuma lógica. Aquela era uma viagem de trabalho corriqueira e em quatro dias eu estaria com eles, de volta a Londres. Na hora da despedida fiz de tudo para dissimular o pânico. Foi um tchau com gosto de adeus.
Esperando na sala de embarque lembrei que em 1970 eu tinha 9 anos e fui numa caravana com meus pais, irmãs, tios e primos levar meus avós ao aeroporto de Viracopos. Era a primeira vez, desde 1926, quando chegaram ao Brasil provenientes da Polônia, que os velhinhos voltavam à Europa.
Todos os membros da família sempre foram exageradamente emotivos e predispostos a cenas trágicas. Estava mais do que acostumado com berros e rios de lágrimas, constantes ameaças de enfarte e portas batidas na cara. Mas um desespero como aquele da minha avó eu ainda não tinha conhecido e, até a semana passada, não conseguia entender.
Já no caminho para o aeroporto ela começou a praguejar em ídiche contra o meu avô, o “imbecil retardado que teve a péssima ideia de fazer aquela viagem absurda, gastando dinheiro e perdendo tempo inutilmente”. Por mais que todos explicassem que aviões modernos eram muito seguros, que ela não ia se perder em Paris ou ter um acidente cardiovascular em Cracóvia, só uma dose cavalar de calmante a manteve sob controle.
“Carralha a quatro”
Na hora do embarque ela teve um chilique. Se agarrava aos netos chorando como uma louca, o agudo estridente de seus gritos ecoando pelo aeroporto. Meu avô a arrastou à força em direção ao portão de embarque. Soubemos depois que ela atrasou o voo e que por muito pouco o comandante do avião não impediu que ela embarcasse.
Por anos, diverti muito a família imitando a cena de Viracopos. Vestia peruca da minha avó e seus óculos. Começava a praguejar contra Deus e contra todos em um ídiche incompreensível entrecortado com palavrões mal pronunciados em português tipo “carralha a quatro” ou “banda de filhos da puta”. Às vezes, interpretando minha avó, eu entrava tanto no papel que começava a chorar de verdade e conseguia senti-la viva dentro do meu corpo.
Mas só na semana passada, entrando naquele avião como um condenado que sobe à forca, entendi o porquê daquele melodramático embarque da minha avó. O carro- chefe do meu repertório de palhaçadas tinha uma enorme razão de ser. Percebi que, ao partir em Viracopos, minha avó certamente se lembrou da Polônia, do dia em que ela havia se despedido dos seus pais e irmãos, ainda moça, ao emigrar para o Brasil. Aquele foi um adeus para sempre. Ela nunca mais os viu pois foram todos exterminados na Segunda Guerra Mundial. Minha avó tinha medo de ir e ficar só no mundo. Obrigado, Deus, por ter-me feito entender. E por me deixar rir de tanta tragédia.
*Henrique Goldman, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br