por Milly Lacombe
Trip #273

Existe uma emoção bastante intensa e primitiva associada a não ter mais nada a perder

Outro dia chorei de saudade. Não é incomum que eu chore de saudade; como canceriana, boa parte de mim vive nostalgicamente no passado. O que foi estranho a respeito dessa saudade é que a emoção que eu estava sentindo vinha de lembranças dos piores dias da minha vida. Dias em que eu estive profundamente sozinha, perturbadoramente triste e absolutamente desorientada. Dias em que eu não tinha dinheiro, não tinha mais o casamento que eu achei que ia durar para sempre, nem onde morar.

Fui buscar entender do que exatamente eu sentia saudade e cheguei à conclusão de que existe uma emoção bastante intensa e primitiva associada a não ter mais nada a perder. Essa talvez seja a derradeira liberdade, porque uma vez que tudo ao seu redor tenha desmoronado – e dado que você ainda esteja respirando –, fica apenas o vazio. Seu corpo está despencando no abismo e você é incapaz de temer, ou sequer de lutar para sobreviver. É um completo estado de ausência de medo e de desejo, dois dos grandes causadores de angústias. Sem medos e sem desejos, eu estava imperialmente livre.

Exercendo essa liberdade, me mandei para uma cabaninha no meio do mato, levando poucos livros e muitos vinhos. Foram quase seis meses dessa solidão. Seis meses sem ligar a TV, sem ir a festas, sem receber visitas. Seis meses de prantos; as lágrimas que chorei durante esse retiro solitário poderiam resolver problemas de algumas boas secas ou fazer nascer largos rios. Nem eu sabia que sabia chorar assim.

Mas tampouco sabia que sabia dançar, ou cozinhar, ou meditar. Também não sabia que sabia rir de piadas bobas que eu inventava, que sabia matar aranhas de tamanhos pré-históricos ou que sabia ficar sem luz no meio do mato e, ainda assim, me manter calma.

O que eu sabia é que sou uma mulher privilegiada que pode se dar ao luxo de sair de cena para lamber as feridas. A maioria das pessoas não têm uma cabaninha no meio do mato para onde elas possam se mandar quando bem entenderem, e simplesmente não podem parar de trabalhar ou sequer diminuir o ritmo quando a vida machuca. E a vida machuca; cedo ou tarde, a vida machuca todo mundo. Então, se a gente quer que ela tenha um significado, qualquer coisa que nos faça ter coragem para seguir, é preciso que encontremos um significado e o forneçamos a ela. Ficar esperando que isso caia do céu em escrituras personalizadas não vai nos levar muito longe. Assim, lá fui eu atrás de dar um significado ao que restou da minha existência.

 

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Com afeto

Hoje, refeita da separação, tendo conseguido me reerguer financeiramente e apaixonada por uma mulher linda, doce e que me faz rir, sonhar e delirar, sou capaz de lembrar com afeto dos dias em que fiquei sozinha e me reencontrei comigo e com as fundações da minha existência.

Olhando para trás, posso entender que os piores acontecimentos da vida têm a capacidade de, uma vez vistos da perspectiva mais longa, se mostrarem iluminados pela mesma força que acendeu as estrelas. Mas se existe um segredo, ele está em aprender essa importante lição sem precisar esperar que o tempo passe, as feridas cicatrizem e você possa olhar para trás em atitude de agradecimento.

Há alguns anos conheci um rabino que dizia: “Tudo vem da luz. Todos os acontecimentos da vida, dos mais grotescos aos mais sublimes, vêm de um mesmo lugar de bondade”. Eu era jovem, ainda não tinha passado por nenhum grande dilúvio emocional que me obrigasse a construir uma arca, colocar nela tudo o que julgasse importante salvar e zarpar sem saber para onde, então as palavras do rabino soaram românticas, mas não exatamente reais.

Agora percebo que é fácil enxergar a beleza que embala a tristeza depois que a tormenta passa e você se encontra, uma pessoa agora maior e melhor, remando relaxadamente um barquinho muito leve em mar calmo e durante um dia ensolarado. Mas a coragem com C maiúsculo está em perceber a poesia da dor no momento em que o mundo desaba ao seu redor. É o que chamam de fé – palavra que sempre me bodeou porque vem carregada de um conteúdo que associo a religiões organizadas e à exploração da capacidade que temos para sermos bons. Mas, para lá do mau uso que fazem dela, fé talvez seja a mais completa aceitação da vida com todo o seu horror e todo o seu esplendor. A consciência de que o pior dos acontecimentos vem de um lugar de bondade vai servir para dar início a uma poderosa e necessária transformação.

Uma vez, enquanto eu vivia um luto desses que não fazem sentido – porque ninguém que chega ao mundo depois de você deveria ir embora antes –, Bete, a profissional que dá banho em meus cachorros, me vendo triste e cabisbaixa, disse: “Olha, ficar bem quando a vida tá boa é fácil. O desafio é ficar bem quando a vida tá ruim”. Bete estava me dizendo a mesma coisa que o rabino, com palavras que só a sabedoria popular pode embalar.

Então, por tudo isso, eu chorei de saudade daqueles dias tão tristes e solitários, quando consegui ver do que sou feita e como são poderosas as transformações de consciência.

Resta saber se, no próximo grande desabamento – porque os dilúvios emocionais nunca deixarão de nos visitar –, terei aprendido a lição e conseguirei sorrir e dançar enquanto mundo desaba.

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