por Henrique Goldman

É difícil entender por que tantos judeus, em vez de superar o trauma de gerações passadas, preferem cultuá-lo. Talvez nenhum outro povo sinta tanta necessidade de lembrar suas tragédias

Desde criança me sentia atraído por aqueles livros com fotos em preto-e-branco de prisioneiros em campos de concentração. Em vez de assistir a Vila Sésamo, preferia ler Diário de Anne Frank e Inferno em Treblinka.

Para quem não é judeu, é difícil entender por que tantos judeus, em vez de superar o trauma de gerações passadas, preferem cultuá-lo. Os africanos, os índios, os armênios e tantos outros povos também foram trucidados. Mas eles não transformaram a própria tragédia em identidade. A cultura judaica é uma das mais antigas do mundo e só sobreviveu por ser esse culto obstinado da memória.

Tenho um amigo alemão que me confessou estar de saco cheio do Holocausto, pois a vida inteira esfregaram seu nariz na merda de outra geração. É compreensível. Ele não é nazista, nem anti-semita. Só fico chocado porque ele nunca quis saber onde seus próprios pais estiveram durante a guerra e qual era a postura deles com relação aos judeus. Na casa deles o assunto é tabu. Tem razão quem lembra ou quem esquece? Por quanto tempo é legítimo lembrar?

O escritor Norman Finkelstein, filho de sobreviventes do Holocausto, escreveu o livro A Indústria do Holocausto, no qual acusa setores das comunidades judaicas de explorar a tragédia para justificar certas políticas israelenses no conflito com os árabes. É uma tese interessante porque parece ser, pelo menos em parte, verdadeira. Muitas vezes eu mesmo me flagro deixando de lado meu senso de justiça e permitindo que meu medo justifique a arrogância dos israelenses. Sou filho do Holocausto. Fica difícil não cair nessa tentação quando percebo tanto ódio contra os judeus.

Quantas vezes ouço dizer: "Como é possível que os judeus, que sofreram tanto no Holocausto, possam fazer o mesmo contra os palestinos"?. É um comentário malicioso e triplamente burro. Primeiro porque a tese pode ser usada em sentido contrário. "Nós judeus, que sofremos tanto no passado, não vamos mais levar porrada de ninguém." É com esse tipo de argumento que Ariel Sharon se mantém no poder. Segundo porque a pergunta pressupõe que uma vítima tem menos direito de ser algoz do que uma não-vítima. Terceiro porque, apesar de discriminatória, a política israelense nunca visou exterminar os palestinos. Como disse o escritor israelense Amos Oz, não saber distinguir entre dois males diferentes é um enorme mal por si só.

Ouvi também a seguinte observação: "Mesmo para os judeus mais liberais, qualquer crítica a Israel soa como uma manifestação anti-semita". Poucos judeus criticam abertamente Israel. Acho que, muitas vezes, isso também é verdade. Mas a questão me confunde, pois muitas vezes as críticas a Israel camuflam sim um anti-semitismo. Ariel Sharon é um criminoso. Mas o problema é que, para que a justiça seja feita, Tony Blair, Putin, Bush, tantos líderes árabes, africanos e brasileiros deveriam ser seus companheiros de cela.

A discussão não tem fim. O tema será sempre um nó cego na minha cabeça. E olha que sou ateu, graças a Deus! Fecho o enésimo livro que estou lendo sobre o Holocausto. Penso numa praia do litoral de São Paulo. Está fazendo sol e muitas bundas tesudas sassaricam ao meu redor. Sol e bundas tesudas fazem esquecer até Hitler.

*Henrique Goldman, 40, cineasta, é um judeu fascinado pelo Holocausto, mas prefere as bundas tesudas do litoral paulista.

Vá lá: A Indústria do Holocausto, Norman Finkelstein, Editora Record

Créditos

Imagem principal: Murillo Meirelles

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