Meu guru argentino

Conheça o psicanalista que une Freud com a ioga e defende as garrafas pet e o churrasco

Conheça Héctor Gonzalo Surman, o psicanalista hermano que une Freud com ioga e defende as garrafas pet e o churrasco dos pampas

 

De direita ou de esquerda, aprendemos desde cedo a acreditar no progresso. O da direita, positivista, é linear e cumulativo. O da esquerda é marxista e dialético, sujeito a trancos e rupturas. Mas, em ambos os casos, as coisas sempre, de uma forma ou de outra, evoluem. E, ouvindo isso desde pequenininhos, acreditamos. Mas não é assim que pensam todas as pessoas, incluindo aí meu amigo Héctor Gonzalo Surman, argentino (mãe catalã e pai judeu), psicanalista, criador da terapia freudiana upanishad brhadaranyaka, uma revolucionária doutrina que une os conceitos do ego e dos quatro vedas, além da técnica dos “sonhos de Borges” (em que, em vez de analisar os sonhos do paciente, em geral entediantes, analisa-se, numa parceria dinâmica e intensa, os sonhos das obras de Jorge Luis Borges, infinitamente melhores). Héctor tem um aspecto vagamente afeminado, que usa a seu favor para ganhar as adeptas mais novinhas das práticas de ioga. E uma postura política ligeiramente à esquerda, o que acaba sendo útil para conseguir contratos para palestras motivacionais em ministérios, estatais e autarquias federais.

 

Para Héctor, o progresso nada mais é do que uma ilusão, pois só o que é real é a mudança. Basta olharmos para nós mesmos: nascemos, crescemos, amadurecemos (e esse processo se parece com progresso), mas em seguida envelhecemos, ficamos mais sujeitos às doenças, nossa mente se deteriora e, no fim, morremos (onde foi parar o progresso?). Se o que há é mudança, como garantir que ela seja “para melhor”? Impossível, diz o mestre. Mas pode-se tentar um caminho de constante aperfeiçoamento e busca da iluminação, algo como viver num estado permanente de relaxada atenção (ou vice-versa). A verdade, se é que existe, não está nos livros, na internet ou nas salas de aula, mas dentro de cada um de nós. Héctor pode ser mesmo surpreendente: uma vez o peguei assistindo a Two and a half men e me espantei, “como? O Mestre, assistindo a seriadinhos?”, mas ele logo explicou que meditava melhor com a TV ligada.

CHORIZO SUSTENTÁVEL
Pergunto a Héctor como conciliar a busca pela iluminação com a sustentabilidade. Ele me dá o exemplo da alimentação. “Se como carne, contribuo para o desmatamento da Amazônia e para o aquecimento global. Se como soja, o desmatamento é no cerrado, mas o problema é o mesmo.” Então, como fazer? Ele sorri, generoso ante minha ignorância, antes de falar: “No meu caso, como carne argentina, pois, além de ‘mas buena’, não desmata, pois os pampas estão desmatados há milênios”. Me assusto com a resposta, que de início parece absurda, mas aos poucos vou compreendendo sua sábia forma zen de ver o mundo. Se as coisas não progridem, apenas mudam, devemos buscar dentro de nós a saída. E, dentro de Héctor, o que está é a tenra carne de seu país natal.

Meu amigo, que vive hoje no eixo Vila Madalena-Trancoso-Búzios, também tem uma visão peculiar sobre as garrafas pet. Sim, elas poluem, mas, custando menos, mostram a todos nós, com muito mais clareza do que latas e garrafas de vidro, o absurdo que é o consumo desenfreado. Então, se é para causar um choque de consciência, e buscar dentro de nós uma mudança, elas são ideais. É por isso que ele consome, aos montes, guaraná e Coca-Cola em garrafas pet. Se estivermos em paz com nosso eu interior, diz Héctor, o mundo poderá ser inundado por marés em oceanos de estafilococos, assolado por furacões e espremido por desertos e lixões em expansão, que não haverá problema, pois, olhando bem fundo para dentro de nós mesmos, encontraremos a harmonia, a paz e a beleza.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador, trabalha com tecnologia e avisa aos mais lentos que Héctor é um amigo imaginário. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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