Meu bairro, esgoto e suor

À tarde, o bairro começa a ganhar vida de novo; os trabalhadores andam a passo acelerado

À tardezinha, o bairro começa a ganhar vida novamente. Voltam os trabalhadores. Não conversam de tão cansados. Andam a passo acelerado, com o corpo pendido para a frente

Quando vim morar aqui, não imaginava que fosse assim. Essa efervescência existencial, a explosão de movimentação, parecia tudo sem sentido para mim. Subindo a rua onde moro, cada casa tem pelo menos quatro ou cinco crianças. Elas me acordam logo cedo ao descerem para a escola no fim da rua. Quanta esperança caminha com aquela multidão de pequenas vozes...

As ruas são sinuosas e provocantes. Sempre que alguém vem me buscar de carro alerto: cuidado, devagar; não há calçadas e as pessoas andam pelas ruas. Parte do bairro foi invadida pelo povo e vive processo contínuo de construção desordenada. No meio da vila, a indefectível valeta. O esgoto a céu aberto lembra uma lava incandescente, emanando uma atmosfera nauseabunda.

Durante o dia o bairro é morto. Só se veem crianças pelas ruas. Homens e a grande maioria das mulheres só são vistos nos fins de semana. Moro aqui há cinco anos e sempre encontro gente que nunca vi. Mas das 4h às 7h nos encontramos todos. Sonolentos, ainda acordando e seguindo para o trabalho mecanicamente.

Garotas recém-conscientes de sua sensualidade empinam as bundinhas em shorts cavados e encaram o mundo com desdém estudado. Embu das Artes, periferia da periferia, extremo sul da Grande São Paulo. Agora, depois que asfaltaram ruas, se vê carro da polícia de passagem. Também para quê? Para bater na rapaziada que fuma um baseado na esquina e humilhá-la? É inaceitável roubar por aqui. E, para matar, é preciso estar 100% certo e obter aquiescências. Caso contrário, desaparece ou aparece morto na viela. A população foi obrigada, para não virar barbárie, a se autorregulamentar.

Quando percebi a quantidade de jovens cooptados pelo tráfico, me assustei. Não há trabalho e eles ficam zanzando pela noite no bairro sem tostão no bolso, como zumbis. “Trabalhar” na “biqueira” parece a saída. Toda periferia tem sua “biqueira”. Tráfico de drogas hoje só falta bater cartão para parecer com qualquer outro tipo de trabalho ou comércio.

Chuva e lama
Depois de algum tempo, observando melhor, percebi que a maior parte da juventude aqui trabalha desde muito cedo. Seguem pendurados em ônibus lotados, enquanto o dia se solta das asas escuras da noite. Boa parte está completando estudos ou fazendo faculdade após o trabalho. Vida dura de poucas horas de sono e muito esforço.

Quando chove, o bairro submerge em barro e lama. O povo sai de casa com os pés envoltos em sacos plásticos, tentando não se sujar. Mas é fatal: sempre fica algo de pastoso na garganta e na roupa de quem enfia o pé na lama. Quando chove, nos sentimos plantados em meio ao adubo de toda essa imundice pastosa.

À tardezinha, o bairro começa a ganhar vida novamente. Voltam os trabalhadores. Não conversam de tão cansados. Andam a passo acelerado, com o corpo pendido para a frente. Parece que tudo que querem da vida é chegar às suas casas. Às vezes, aqui de minha janela eu os flagro sorrindo. Provavelmente pensando na molecada e na companheira esperando. Sorrir sempre é importante; não há tantos motivos assim. Nas mãos, um pacotinho. Doce para as crianças; sinal de que conseguiram, mais uma vez.

Quanta coragem! Ou, ao contrário, quanta resignação! O que é fundamental na vida dessas pessoas para suportarem essa pesada rotina e seguirem incansáveis? O que explode em seus movimentos e dá sentido à sua dura vida? Descobri recententemente: suas crianças, seus amores. Em cada uma dessas pequenas casas mal construídas, existem muitas crianças. Tesouro que os pais zelam e protegem. Esse é todo o motivo e a fortaleza. Há os que desmentem, mas ainda assim não é a regra.

*Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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