por Luiz Alberto Mendes

Era uma tarde iluminada por âmbares e vermelhos em degradês; sem inspiração, eu vagava


            Era dessas tardes iluminadas por âmbares e vermelhos em degradês. Sentado à varanda da casa de um amigo, vazio de inspiração, eu vagava. A largueza do vento comandava meu pensamento. Fugia-me. Tentava preencher-me por algum movimento que sensibilizasse a alma preguiçosa. Em frente, bem próximo, na esquina, num desses bares pequenos de bairro suburbano, pessoas bebiam e riam alto. Talvez trabalhadores alegres e bebidos fortes. Provavelmente descansavam a rotina massacrante do dia de trabalho.

            De súbito, em passos trôpegos, adentra ao bar um homem todo esquisito. Desses mendigos altos e magros. Assim barbudo com chapéu roto e desbeiçado. Capa de pano com remendos grosseiros. Meus olhos caminhavam em seus passos. O inusitado. Os risos cessaram.

            A atenção centrou-se naquele pobre diabo. Ele mesmo parecia nem se dar conta da tensão que sua entrada brusca causava. Os olhos cresciam de censura e preconceito. Sua presença era quase ofensiva para aqueles homens alterados pela bebida e encorajados pelo grupo. O homem parecia não ligar, não se importar nem um pouco. Parecia estar além da censura e da crítica. Nada, provavelmente, o atingiria. Era surrealista. Senti que ele estava protegido pôr sua condição de nada ter, nada querer e pouco se importar.

            Com a voz em pedaços, tossindo e engolindo pigarros, pediu uma cachaça. O balconista do boteco procurou servi-lo apressadamente, a fim de despachá-lo logo. Aquele indivíduo, evidentemente não aceito, parecia nocivo à sua freguesia. Um calor desembainhado, fazia porejar gotas de suor de sua testa e lábio superior.

            Bebeu a fortíssima bebida qual fosse água. Sequer piscou. Todos o olhavam indignados. Já alguém sugeriu expulsar o indesejável. O homem parecia blindado, nada o afetava. Pediu outra pinga e novamente verteu goela abaixo em único golpe. Os olhares encorajaram-se em vozes. O suspense crescia.

            O homem descansou um saco que já fora branco, no chão. Tirou o chapéu ensebado colocando-o em cima do balcão. Com os olhos lá do fundo da cara, deu uma raspada em todas as pessoas no estabelecimento. Parecia possuir sabedoria superior adquirida de inúmeras vidas e fosse muitos ou todos homens ao mesmo tempo. Ignorou a todos, acintosamente, num largo gesto de desdém. Eram inteiramente destituídos de importância para si.

            A agressividade que estalava no ar como chicote, se desfez como que pôr encanto. O caótico, que parecia subversivo, colocou cada um em seu lugar. O homem retirou umas notas amassadas do bolso e colocou-as no balcão. Cheio de nojo, o balconista recolheu o dinheiro com a ponta dos dedos. O mendigo estapeou a todos com um ultimo olhar de desprezo. Deu-lhes as costas, apanhou seu saco imundo e saiu andando lentamente, sem o menor receio.

            O silêncio parecia o coração da vida. Ninguém via, mas todos sabiam. O vento soprou e a tensão ficou insuportável. Um mal-estar detonou no espaço. Havia uma sensação de humilhação no ar. Todos os olhos fugiam naquela figura fantasmagórica, caminhando na calçada. Pareciam querer apagá-lo de suas mentes.

            A presença daquele homem afetara a todos. Era um inimigo inalcançável. Sua entrega à derrota, sua recusa em lutar para se manter à tona, como todos ali faziam, diminuía a importância de seus esforços. Ele renunciava aos valores existenciais que todos tanto prezavam. Desprezava as posições que eles tanto competiam para conquistar. Questionava seus conceitos e mexia com a auto-estima de cada um.

            Mas algo doía muito mais. Sentiam-se destituídos de valor pôr nada significarem àquele "reles" mendigo. Fizessem o que fizessem continuariam a nada significar para o homem. Nada o atingia, pois ele nada possuía que pudesse ser atingido.

            Na rua, quietamente, seguia aquele sujeito que parecia tão infeliz. Cão sem dono, não olhava para frente, apenas vagamente para o chão. Sua intensidade parecia estar voltada para dentro. A vida, eu desconfiava, desamparava-o. Ficava como a poeira do chão e descia ao nada, sendo o que não era.

            Aquele homem grande, indestrutível em sua humanidade, encheu-me os olhos de uma ternura espessa que acompanhava seus passos rua abaixo. Uma profunda compaixão pôr todos nós homens, trabalhadores, presidiários e mendigos, tomou conta de mim.

            Compreendi, quando à noite me envolvia na escuridão, o quanto nos isolamos e nos fazemos sós nesse mundo. O quanto nos dividimos pôr valores tão questionáveis. Deixei-me ficar ali, sentado, sentindo o vento varrer o chão, enquanto as estrelas enchiam o céu de brilho. Uma tristeza me embalava docemente.

                                                                                                                      Composto por Luiz Mendes em 05\05\2003.

                                                                               

Obs. Esse texto fiz a muito tempo e já até o editei na minha coluna que antecedeu a este blog. Lendo-o hoje gostei muito e achei que seria legal colocar no blog para quem ainda não leu. Gosto muito deste texto, foi escrito em um momento muito poético e humanode minha existência.                          

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