Henrique Goldman e a lembrança de uma gafe que até hoje o atormenta à noite
Nunca mais vi o repórter e sua mulher. Mas ainda hoje, 23 anos depois, como um fantasma patético, essa memória me acorda à noite
No longínquo ano de 1987 eu era cameraman no departamento de jornalismo de uma rede de televisão italiana. Ralava como uma besta, ganhava mal, mas adorava porque o diretor do jornalismo tinha muito bom gosto. Ele contratava italianas gostosíssimas e na redaçao rolava uma galinhagem braba.
Numa fatídica manhã de inverno eu e minha equipe entramos em uma van com um repórter comunista muito mal-humorado. Era o início de uma viagem que deveria durar cinco dias pela Irpinia, uma região que havia sofrido um terremoto. A viagem seria longa e, para matar o tempo, eu e o operador de som começamos a falar das gostosas da redação. Era aquele papo bem cuecão: pra mim a mais gata era uma arquivista siciliana, para ele era uma ruiva tingida. O motorista interrompia dizendo que gostava mesmo da maquiadora do telejornal.
Depois de muitos quilômetros, passamos também a analisar as colegas menos atraentes. Foi quando eu, desgraçadamente, disse: “Uma que eu não comeria nem a pau é aquela jornalista baranga, a Ana Rita. Essa sim é um nojo”. O técnico de som me deu uma cotovelada nas costelas. Sem entender nada, eu disse bem alto pra ele parar de me cutucar. Ele fez um sinal para que eu calasse a boca e indicou o banco da frente onde estava sentado o marxista-leninista sorumbático. Só então caiu a ficha: o repórter era marido da mocreia, a tal de Ana Rita.
Ele não disse nada. Cruelmente, ele mal se mexeu no banco da frente.
A viagem foi insuportável. O constrangimento pairava no ar como uma nuvem tóxica. Ao chegarmos ao hotel, sentia vontade de desaparecer. Ele também evitara o meu olhar. Um sinal claro de que se ofendera foi ele não querer sair com a equipe para jantar. Encorajado pelos outros, respirei fundo e liguei pro quarto do cara para convidá-lo para um drink. Mas quando ele atendeu o telefone não consegui dizer nada. Entrei em pânico e desliguei na cara. Com certeza ele sabia muito bem quem tinha ligado. Passei a madrugada inteira tentando redigir um bilhete me retratando. O que soaria menos horrível? “Peço mil desculpas por ter dito que jamais comeria tua mulher”? ou “foi só uma brincadeira, na verdade ela é um tesão”? Enchi o cesto de lixo do quarto do hotel com diferentes versões, cada uma mais constrangedora do que a outra. Com o raiar do dia, cheguei à conclusão de que talvez o melhor fosse ficar na minha.
No dia o cara nos esperou no lobby do hotel com aquele ar de bolchevique raivoso e quando saímos ele mal deu bom dia. Chegamos à zona do terremoto e nos preparávamos para gravar as primeiras imagens dos escombros. Me esmerando para enquadrá-lo da melhor maneira possível, resolvi escalar um barranco carregando sozinho a câmera, o tripé e o deck de som. Em minha insaciável sede de autopuniçao, não vi um enorme buraco logo atrás de mim. Dei um passo para trás e caí lá dentro, de costas, com a câmera e tudo. Fui parar onde achava que merecia parar, no hospital dos flagelados. Por sorte, só esfolei o braço e fraturei a clavícula. Mas quebrei a câmera e no mesmo dia tivemos que voltar para Roma sem ao menos começar a reportagem.
Logo depois me demiti da televisão e felizmente nunca mais vi o repórter ou sua mulher. Mas ainda hoje, passados 23 anos, como um fantasma patético essa memória me acorda à noite. Levanto para tomar um copo de água e prometo para mim mesmo – sabendo muito bem que não vou cumprir a promessa – que irei sempre pensar duas vezes antes de dizer merda.
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br