John Robbins abdicou de um império que produzia sorvete para tornar-se um dos maiores ativistas alimentares do mundo

John Robbins deixou para trás um família conservadora e um império que produzia sorvete, dólares e obesidade em quantidades industriais. Tornou-se um dos maiores ativistas alimentares do mundo e provou que dinheiro não é riqueza

Se idealismo, como nossos tempos sugerem, é sinal de ingenuidade, então John Robbins faz de qualquer Poliana a mais vil das biscates. Lamento informar, caros leitores e leitoras, que eis aqui um homem que não tem seu preço. É que desde os anos 60, quando virou as costas para uma fortuna e foi morar no mato para cultivar a própria comida, John vive em uma abnegada missão. Ele dirá que é ser feliz e transformar o mundo. Seus leitores dirão que ele quer mudar a dieta americana. Outros que encarnou para mostrar o valor do desapego e provar que menos é, de fato, mais. Mas a sua vida, os inapeláveis fatos, vaticinam: John Robbins está entre nós para provar que o carma, esse mesmo, tem arroubos de novela das oito. Exemplo? Tudo começa com o pequeno John em sua mansão, nadando em uma piscina em forma de um sorvete de casquinha.

Filho único, John tinha a seu dispor a fortuna da Baskin-Robbins, a mais rentável empresa de sorvetes do mundo em seu tempo. Seu pai foi o mais bem-acabado self-made man. Irv Robbins veio de baixo, encarou a Grande Depressão e construiu um império de 31 sabores que rendiam bilhões. Criou o primogênito, desde muito cedo, para assumir os negócios e viver o sonho americano à décima potência. Tudo corria bem, até que os anos 60 chegaram sem aviso...

“Pai, você entende que inventar um 32º sabor de sorvete não é uma escolha adequada para mim?”

John se sentia cada vez mais abalado pelos terremotos culturais que tomavam a Califórnia, seu Estado natal, naqueles dias. E, mais do que ninguém, ele tinha um pé em placa tectônica. Em casa, seu pai ultra-conservador recebia o alto clero do Partido Republicano para apoiar a guerra no Vietnã. Na faculdade, Berkeley no caso, movimentos pelos direitos civis se articulavam em passeatas. Enquanto o pai era cogitado para concorrer ao governo da Califórnia para conter a onda liberal do Estado (Ronald Reagan acabou o escolhido para a chapa), John descobriu o LSD e a alimentação macrobiótica. Em casa, tinha Rolls Royce e uma máquina de refrigerante. Na universidade mais adepta da contracultura do mundo, havia casas comunais e cursos de ioga. Enquanto se alternava entre clubes de golfe de brancos e ativismo direto com o doutor Martin Luther King, John foi se preparando psicologicamente para o inevitável: avisar seu pai que iria seguir o próprio caminho.

Foi quando seu tio morreu e a novela continuou. Era o cunhado de seu pai, o Baskin do nome da empresa. Sócio desde a fundação, familiar querido, teve um ataque cardíaco aos 54 anos. O inconsolável John não tirou um pensamento da cabeça... teria aquele sorvete alguma relação com a súbita morte do tio? E chegou à triste conclusão de que, mesmo que as gorduras saturadas não tivessem causado diretamente a tragédia, ninguém tinha fabricado tanto sorvete no mundo quanto sua família. Chamou seu pai e soltou a bomba: “Pai, este é um mundo diferente de quando você cresceu. O meio ambiente está se deteriorando. A cada dois segundos uma criança morre de fome enquanto a gente joga tanta comida fora. Vivemos sob uma sombra nuclear e qualquer coisa pode acontecer com essas bombas. Sob essa perspectiva, você entende que inventar um 32º sabor de sorvete não é uma escolha adequada pra mim?”.

E assim que John Robbins terminou seu argumento, comunicando que não queria nem a empresa nem um centavo dos bilhões de seu pai, sequer para terminar os estudos em Berkeley, o velho Robbins fez o seguinte diagnóstico: “Você é obviamente inteligente. E obviamente tem boas intenções. Mas você também está obviamente insano...”.

Para o mato e avante

Quando rompeu de vez seu caríssimo cordão umbilical, a Baskin Robbins estampava em outdoors o seguinte slogan: “Nós fazemos você feliz”. Era tudo o que John lutava contra. “Para mim, felicidade tem a ver com a forma como você leva a vida. Com respeitar e ajudar os outros. Ninguém pode comprar isso, ainda mais em uma casquinha de sorvete.” Então, para pagar a faculdade e tocar sua modesta vida no campus, John tinha dois trabalhos: lavava pratos (o que dava pouco dinheiro) e apostava no pôquer, o que lhe fez quitar a faculdade e juntar uns poucos milhares de dólares. Tudo para não ter um emprego “de verdade”, já que queria gastar sua energia com coisas mais importantes, como a namorada Deo e o ativismo. Foi ao sul marchar pelos direitos dos negros, estava surfando aquela onda perfeita do fim dos anos 60. E então veio 68, em três terríveis capítulos: 1. Mataram Martin Luther King. “Foi pior do que se tivessem matado um parente meu”, explica. 2. Quatro meses depois mataram Bobby Kennedy, provável candidato democrata nas eleições presidenciais. “Ele ia ser presidente, e a gente sentia que o mundo ia mudar pra melhor...” 3. Richard Nixon foi eleito.

Foi demais para as idealistas cabeças de John e Deo. Casaram-se, arrumaram as malas, pegaram a poupança do pôquer em Berkeley e se mudaram para uma cabana de madeira que ergueram com as próprias mãos na costa oeste do Canadá. Por quase 20 anos viveram uma vida muito, muito simples. Gastavam US$ 500 ao ano. E eram felizes. Meditavam, faziam ioga, ofereciam retiros para turistas atrás de férias mais espirituais. Não tinham energia elétrica, cultivavam 95% de tudo o que comiam. Estritamente vegetarianos, passavam horas cuidando da horta e estocando comida para o terrível inverno canadense. Em 1974 nasceu Ocean, seu único filho. Enquanto o menino crescia solto no mato, John começava a se questionar de novo. Depois do duro golpe de 68 e de ter passado os anos 70 exilado no Canadá, precisava se engajar de novo. “Eu sentia em mim aquela vontade de mudar o mundo. De fazer alguma coisa maior, mais significativa. E resolvemos voltar para os EUA, porque se você faz diferença lá, acaba impactando o mundo.”

Escreveu seu primeiro livro assim que colocou os pés nos EUA. Em 1985 chegou às prateleiras o Dieta para uma nova América - Como suas escolhas afetam sua felicidade, sua saúde e o futuro da vida na Terra. Foi um sucesso estrondoso. Indicado para o prêmio Pulitzer em 1987, vendeu mais de um milhão de cópias, foi publicado em mais de 20 países e é considerado por quase todo ativista ecoalimentar como o mais importante livro já publicado sobre a questão.

A felicidade cabe num prato

Em plena era de consumo desenfreado nos anos Reagan, o filho renegado de um destacado republicano abriu os olhos do mundo para os até então ocultos segredos da indústria alimentar. Crueldade animal, pesticidas, hormônios, desmatamento, gorduras saturadas, monopólios. Tudo o que hoje é carne de vaca na mídia entrou na pauta nos anos 80 em um bem escrito relato pessoal de transformação espiritual por meio de uma vida mais coerente. A comida, para Robbins, é a mais bem-acabada demonstração do compromisso que alguém pode assumir com o mundo e consigo mesmo. Felicidade não pode ser comprada. Mas pode caber em um prato... Resultado? Fama e dinheiro. Muito dinheiro.

"Fui me meter com o que mais desprezava no mundo", diz sobre a perda da fortuna investida no fundo de Madoff

Os anos passavam muito bem para John. Escreveu mais cinco livros. Fundou o EarthSave, uma organização ambiental. Usou dinheiro e prestígio para ajudar outros ativistas humanitários e denunciar corporações. E mesmo com uma vultosa conta bancária, seguia levando uma vida bem simples em uma casa pequena, 100% plugada em painéis solares, com pomar e horta, nos arredores de Santa Cruz. Seu filho Ocean não se rebelou como ele. Tornou-se um incansável ativista da própria ONG, a YesWorld, que alista jovens no mundo inteiro para promover causas ambientais urgentes. E o bem-sucedido autor refez uma relação amistosa com seu pai – o ainda bilionário fabricante de sorvetes.

Ironia cármica

Mas ainda não é hora de happy end. Ocean Robbins teve filhos, os netos gêmeos de John, que nasceram há 6 anos. Frutos de um parto complicado e prematuro, os dois garotos tiveram sérios danos cerebrais ao nascer. Até hoje afetados, precisaram de muito cuidado médico nos primeiros anos de vida. O que fez com que John, finalmente, se preocupasse com dinheiro. “Um amigo recomendou pra mim um fundo de investimentos em Nova York. Como não queria me preocupar com esse assunto, coloquei todo meu dinheiro lá.” John hipotecou até a casa de Santa Cruz para aumentar seus rendimentos enquanto as contas do hospital chegavam.

Em 2008, a ironia cármica chegou em forma de telefonema. Todo seu dinheiro, TODO ele, não existia mais. Simples assim. O tal fundo de investimentos era o famigerado golpe do megaestelionatário Bernie Madoff, que deu um desfalque de impressionantes US$ 65 bilhões em seus clientes. Arruinou milhares de pessoas nos EUA. Hoje condenado à prisão perpétua, Madoff se tornou o símbolo máximo da ganância e do que há de mais ilusório no sistema financeiro mundial. “Fiquei muito decepcionado comigo mesmo. Fui me meter com o que eu mais desprezava no mundo e deixei minha família e meus netos, que tanto precisavam de mim, na mão”, desabafa. Seu pai, a quem John, enfim, poderia ter pedido ajuda, não estava mais vivo. Sobre Bernie Madoff? “Ele é um psicopata”, define. Mas que representa muito bem a patologia que é a causa de todos os problemas que John tanto aponta no planeta. “A gente se tornou muito egoísta, autocentrado e autoindulgente. Essa cultura de mais, mais, mais. Eu sempre me pergunto: Para quê alguém quer ter bilhões de dólares? Você não tem nem como gastar isso... não tem fim. Ninguém consegue ser feliz assim. E a maior prova está nas ruas. Os EUA são o país mais rico, e nós consumimos metade de todos os antidepressivos no mundo”, explica. E o que deixa as pessoas tão tristes, John? “No fundo, nossa essência sabe que está errado. Não tem como fugir. Quanto mais tapamos nossos olhos para a interdependência das coisas, para nossa conexão com todos na rede da vida na Terra, mais infelizes vamos ser.”

Mas John sabe que você colhe o que planta. Foi prontamente socorrido por amigos e, rapidamente, conseguiu um emprego como consultor da rede de supermercados ecologicamente correta Whole Foods. Hoje cobra um cachê para palestrar e acaba de lançar um novo livro nos EUA: The New Good Life, que ele considera talvez sua mais importante obra. Em quase 300 páginas ele detalha ainda mais sua vida, seus insights e, principalmente, como viver melhor hoje em dia significa viver com menos. Relacionando a franca crise financeira, ecológica e espiritual que o mundo vive hoje, chega a uma teoria bastante convincente de que a luz no fim do túnel é a criação de uma “economia da felicidade”, como chama, em que a prioridade é o bem alheio e não o pessoal. Em que a simplicidade produz abundância em vez do modelo depressivo de excesso que gera escassez.

Alegoria americana

Seu livro novo tem tudo para se tornar um best-seller. Mas isso nem é mais necessário. No dia em que nos encontramos, John estava esfuziante. Um texto em seu blog sobre “o lado negro da água vitaminada” se tornou o mais lido da história do Huffington Post, o mais influente site liberal dos EUA. “Estou aprendendo a escrever para a internet”, diz, aos 63 anos, em plena forma física e mental. “Na internet é diferente, você precisa ser mais rápido e pegar o leitor na primeira frase. Mas é incrível, tudo isso está espalhando de maneira viral, é uma loucura.”

Repassando a história de John Robbins, não dá para deixar de pensar na estranha maneira como o destino escolhe seus favoritos. De uma forma nada sutil, ele é uma alegoria perfeita dos dramas e conflitos dos últimos 50 anos. Sinopse: menino bilionário com piscina de sorvete em casa se torna estudante de Berkeley no meio dos anos 60, abraça a psicodelia e se envolve com Martin Luther King. Conhece uma garota, tem uma crise de consciência, nega a fortuna do pai, amigo de Ronald Reagan, se muda para o mato, planta o que come e escreve um best-seller. Fica rico, famoso. Nascem dois netos gêmeos com deficiência mental. No auge da crise financeira global, perde tudo com o mais caricato dos pilantras. E, de súbito, torna-se o autor mais lido no noticiário online mais influente do mundo... Antes de se despedir, faz um ótimo discurso ao presente repórter que, depois de escutar sete horas de John Robbins, decide parar de comer carne. Seria ficção barata. Se não fosse real.

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