Me engana que eu amo

Uma alegre confraternização entre enganados e enganadores

O que era para ser a comemoração dos 90 anos do meu tio Alyrio se transformou em uma verdadeira aula sobre segredos e mentiras familiares, uma alegre confraternização entre enganados e enganadores

 

Caro Paulo,

Que medo de uma conversa sobre segredo e mentira cair num moralismo empobrecedor. Mas, graças ao meu bom destino, fui a uma festa no Rio de Janeiro comemorar os 90 anos do meu querido tio Alyrio Cavallieri, ilustríssimo e conhecido juiz de menores. Lá tive uma improvável aula sobre segredo e mentira.

Tio Alyrio disse que não queria festa. Mas a família preparou um evento inesquecível com convidados de todo o país, servidos pelo competentíssimo Laguiole, nas instalações do Museu de Arte Moderna, que fica no meio de uma das paisagens mais poéticas e inspiradoras que eu conheço: o aterro do Flamengo assinado pelo Burle Marx. Show! Alimento para o corpo, a alma e o coração. A festa era segredo para ele e, por consequência, mentira porque a família dizia que não haveria festa.

Lá pelas tantas, depois das homenagens, meu tio abriu seus agradecimentos com um italianíssimo “Se ti credo...” e logo traduziu para um castiço português: “Me engana que eu gosto”. Ele sabia da festa, mas também mentia dizendo que não sabia. Uma deliciosa sem-vergonhice de segredos e mentiras permeados e permitidos pelo afeto, pela lealdade e pelo grande senso de humor dessa incrível famiglia. Todos, enganados e enganadores, felizes.

O que estava acontecendo ali? Um homem de 90 anos, reconhecido em todo o mundo por dedicar sua vida a buscar a verdade e a justiça, brincando e se divertindo com segredos e mentiras. Mesmo que fossem segredinhos e mentirinhas brandas e perdoáveis, ali tinha uma sabedoria e uma intimidade com a vida que eu precisava beber até a última gota. Eu quero ser assim. Quero poder brincar com a mentira e com a verdade para ser feliz e me divertir. Como estávamos felizes naquela noite!

FIEL DA BALANÇA

Sempre que se fala de felicidade, lembro de uma pessoa que me ajudou a ser feliz, a Vera Helena Camará, que, num dos seus conselhos mais poderosos, me disse: “Quando estiver na dúvida entre a verdade, a justiça e o amor, fique com o amor. Muitas guerras foram feitas em nome da verdade e da justiça. E não se tem notícia de guerra em nome do amor. Os erros cometidos com o pressuposto da verdade e da justiça são terríveis, mas os erros com pressuposto do amor são benignos”.

O que eu entendi da experiência que o tio magistrado de 90 anos estava nos proporcionando é que o amor é o fiel da balança para encontrar a felicidade na tragicômica luta da vida entre a verdade e a mentira. Desculpe, tio, eu sei que essa é uma conclusão perigosíssima nas mãos de menores de idade que ainda confundem amor com sexo e casamento. Amor é intransitivo, não tem objeto, é só sentimento.

Voltando da festa, de madrugada, atravessando o aterro, viajei pelas impressionantes sombras e silhuetas das árvores do Burle Marx criadas pela luz dos postes e da lua do verão carioca. Um espetáculo. Teatro da vida? Verdade ou mentira? Não importa. Era tudo muito lindo e eu estava feliz.

Um abraço de verdade do amigo,

Ricardo

 

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