Luiz Mendes: Foi aquele casal de negros, tão rejeitado pelo racismo de meu pai, que cuidou dele
Foi aquele casal de negros, sempre tão rejeitado pelo racismo de meu pai, que cuidou dele no final da vida. Por amor à minha mãe, eles passaram por cima das humilhações e dos maus-tratos, socorreram e ficaram ao lado dele até o fim
Meu pai, além de alcoólatra, machista e homofóbico, também era racista. Parece que racismo é apenas uma das expressões do mau-caratismo de algumas pessoas. Geralmente o sujeito racista é machista e homofóbico também. É parte de uma cultura e pertence a um tempo. Quando eu era rapaz, ser machista e odiar homossexuais era uma afirmação pessoal. O racismo, já na época, era mascarado. As pessoas não diziam abertamente que não aceitavam a igualdade racial. Somos um país de mestiços e, na periferia, sempre foi temerário atacar outras raças. Mas meu pai era um homem valente; batia em todos e nunca soube que ele houvesse apanhado. Por conta disso, ele dizia o que queria, sem receios. Humilhava com suas piadas infames e seus dizeres desqualificativos.
Minha mãe, ao contrário, gostava de todo mundo e não tinha preconceitos. Morávamos em uma vila de casas. Em frente, morava um casal de negros. Logo chegou Matilde, irmã do rapaz. A pobreza era tão grande, que eles saíam para trabalhar e deixavam a moça com pouca alimentação em casa. Dona Eida, minha mãe, se pegou de amores pela moça e, escondida de meu pai, dividia nossa comida com ela. Ele detestava a moça só porque ela era negra e não aceitava aquela amizade. Dona Eida brigou, teimou, insistiu e jamais deixou Matilde em falta. Com o tempo, meu pai foi obrigado a aceitar.
Eu já cumpria pena, mas apoiei minha mãe em suas atitudes. Entre nós, presos, não havia preconceitos de cor. A maior parte das pessoas aprisionadas é jovem, negra e mora nas periferias das grandes cidades. A constante superlotação dos presídios nos comprimia literalmente. Misturávamos suores, odores e sofríamos as mesmas dores juntos. Éramos “família” em cada xadrez, eram “irmãos” que moravam conosco. E eles tinham tantas cores quantas existem na raça humana.
AMOR E CUIDADO
Foi minha mãe quem apresentou Matilde para Balbino. Ele já era apaixonado e tinha a mesma cor de sua pele. Não posso imaginar quais os truques que dona Eida usou para meu pai aceitar ser padrinho do casamento deles. Depois foram padrinhos da primeira filha e, a contragosto de “seu” Luiz, meu pai, começaram a se visitar. Eles tiveram mais três filhos e “seu” Luiz acabou por se render à paixão que sentia por crianças. Ninguém mais recebia meus pais, nem as famílias deles, por conta do alcoolismo e da estupidez de “seu” Luiz. Somente aquele casal, sempre tão rejeitado, os aceitavam. Suportavam todo o peso do racismo dele por amor à minha mãe. Até com as crianças, que ele gostava tanto, ele era racista. Chamava-os por nomes ofensivos aos negros. Matilde tratava dona Eida como mãe, chamava a mim de irmão e eu sempre tive orgulho disso. Eles davam à minha mãe o amor e o cuidado que nunca pude dar, e eu lhes era imensamente grato por isso.
Minha mãe teve derrame e ficou com o lado direito do corpo paralisado. Matilde ajeitou tudo para que ela fosse morar na casa ao lado da sua, para poder cuidar dela. Foi nesse tempo que “seu” Luiz começou a enlouquecer. Décadas de alcoolismo e tabagismo destruíram seu cérebro. Quebrou a bacia, depois o braço, agredia pessoas e dava trabalho. Tiveram que separar os dois porque ficou perigoso; ele dormia com uma faca embaixo do travesseiro. Durante um ano, ele desequilibrou-se e ruiu sobre seus próprios escombros. No fim, ficou louco, foi internado e morreu no hospital. E foi o casal de negros que cuidou dele esse tempo todo. Sofreram agressões físicas e verbais, compraram remédios caros, levando-o a consultas, internações em hospitais e cuidando até de sua higiene pessoal. Foram as únicas pessoas que se interessaram por ele e sua dor. Passaram por cima das humilhações e dos maus-tratos; cuidaram, socorreram e foram até o fim. Eles o enterraram, me avisaram de sua morte e ficaram cuidando de minha mãe até que eu saísse da prisão.
A Matilde e Balbino, meu agradecimento profundo.
*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com