Findas as eleições de 2014, certamente estão bem vivas as cicatrizes e amizades desfeitas
No dia que você estiver lendo esta coluna, as eleições de 2014 já serão história. Mas certamente estarão bem vivas as cicatrizes, as mágoas, as amizades desfeitas e até mesmo a dissolução de sociedades, tudo por conta do mais áspero, agressivo e intolerante processo eleitoral que eu jamais presenciei. Diante do festival geral de apedrejamento e da perspectiva de “matar ou morrer” em que vínhamos vivendo, algumas pessoas próximas a mim fecharam suas contas no Facebook, “pelo menos até acabar a eleição”. Caramba, o que aconteceu com a gente?
Eu vivi, criança, a ditadura. Pela casa de meus pais circularam perseguidos políticos, conheci gente que foi presa e torturada e mesmo minha mãe escapou por pouco. Depois, durante os últimos anos do regime, eu estudava história na USP, um dos epicentros da oposição, onde (embora nada tenha acontecido comigo) havia riscos reais. De um ponto de vista moral, porém, era muito mais fácil do que hoje. Porque o mundo era em preto e branco, certo ou errado: você escolhia um time e pronto. O ambiente em que eu cresci era o da oposição, e todas as pessoas com as quais eu convivia faziam parte dele. Os “outros” representavam o mal absoluto.
Agora está tudo confuso, misturado e hipócrita. Os dois partidos que disputaram o segundo turno das eleições presidenciais foram fundados e liderados por indivíduos que estavam do mesmo lado (a oposição) durante os anos de chumbo. E os dois partidos contam com o apoio de gente que, na época, estava “do lado do mal”. Petistas chamam de fascistas antigos colegas, e ao mesmo tempo celebram, sem crise na consciência, o apoio de Malufs, Collors e Sarneys. Do outro lado, a prática não é muito diferente.
CONCILIAÇÃO
Na faculdade, meu tema sempre esteve ligado aos movimentos fascistas. Estudei o integralismo brasileiro e agora preparo uma tese relacionada ao nazismo. O fascismo, ao contrário do que muitos pensam, não é uma coisa homogênea. Tem inúmeras faces, e aquela imagem de militantes uniformizados, marchando e batendo em adversários nas ruas é apenas uma delas. Por exemplo, a estrutura sindical e a legislação trabalhista do Brasil de Vargas, parcialmente vigentes ainda hoje, foram bastante inspiradas no que se fazia na Itália de Mussolini e em Portugal de Salazar. Mas ninguém pode afi rmar que Getúlio foi fascista sem despertar uma ensandecida polêmica. Havia, claro, traços comuns a todos os movimentos de tipo fascista. Chamo a atenção para apenas três: 1) qualquer coisa era válida para que se conquistasse o poder, inclusive martelar incessantemente as mais deslavadas mentiras; 2) o debate político foi transformado em propaganda política, com uso e abuso dos (então novos) meios de comunicação de massa; 3) surdos com relação a quem pensasse diferente, os fascistas assumiam seus programas como os únicos possíveis e demonizavam qualquer oposição, ainda que moderada. Se discordasse, você não era opositor, mas inimigo. E, com relação aos inimigos, era matar ou morrer. Qualquer semelhança com nossos tempos...
Voltando ao começo da história, foi assim que eu vi a última campanha eleitoral. Mentirosa, desleal, baseada em propaganda e deixando longe qualquer debate de ideias e projetos. Só não se recorreu ao porrete literal porque, nos dias que correm, o porrete virtual, na TV e nas redes sociais, é muito mais eficiente (Goebbels, o marqueteiro de Hitler, que disse que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, teria tido orgasmos múltiplos com o Facebook e com o Twitter). No recente processo eleitoral brasileiro, assim como na Alemanha de 1930, ninguém era capaz de ouvir uma opinião discordante. E agora que acabou a eleição, vitoriosos ou derrotados, não seria uma boa repensar o que fizemos, abraçar nossos velhos amigos, perdoar e ser perdoado e, por fim, parar de querer exterminá-los?
*André Caramuru Aubert, 52, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com