Picuruta Salazar é genial na água, um mestre para as gerações futuras do surf nacional

Genial e preciso na água, engraçado e carismático fora dela, Picuruta Salazar é o maior vencedor da história do surf nacional. E muito mais: um mestre na arte de entender os movimentos do mar e da vida, um guru que mostrou o caminho para novas gerações brilharem pelo mundo

Era sua primeira temporada havaiana, em 1981. Depois de meses por lá, Picuruta penava meio sem grana. Rico de Souza, que havia levado o amigo, já estava de volta no Brasil. Foi quando apareceram alguns executivos da Olympikus querendo fazer uma foto para uma campanha de publicidade, pela qual prometiam US$ 300. Eles queriam uma imagem na mítica e perigosa Pipeline – onde Picuruta nunca havia surfado, e nem tinha prancha adequada para tal. No dia da foto, Pipe estava quebrando grande. Picuruta pegou uma prancha emprestada - e totalmente inapropriada - e se jogou. Ficou com medo, mas os dólares fariam diferença. Na primeira onda, pesada, dropou e, quando viu, já estava dentro de um tubo enorme, talvez o melhor de sua vida. Pegou mais duas ondas e saiu do mar, que estava crescendo. As pessoas que acompanhavam da areia não acreditavam que ele tinha sobrevivido àquela primeira session em Pipeline assim, no improviso.

Corta a cena, segue o cenário: anos depois, durante uma viagem de surfistas brasileiros ao Havaí, coisas estranhas começaram a acontecer. Alguns deles ficavam com os cabelos mais loiros a cada dia, e as diarreias eram frequentes. Como explicar aqueles fenômenos? Simples, Picuruta por perto. Havia alguns dias, ele e o irmão Almir vinham sistematicamente bebendo um pouco do suco que os amigos deixavam na geladeira e completando as garrafas com detergente. E, nos banheiros, eles tiravam parte do xampu dos frascos e completavam com água oxigenada... Genialidade no mar, irreverência fora dele. Só pode ser o mais emblemático dos surfistas brasileiros, o santista Alexandre “Picuruta” Salazar.

E, se a afirmação de quem é “o maior” pode ser subjetiva, mostrar quem mais ganhou não é. Com 164 vitórias no currículo, entre as quais dez campeonatos brasileiros de longboard, Picuruta é recordista absoluto em títulos. E mais: a marca de mais longevo competidor do surf brasileiro também será difícil tirar dele. A poucos meses de completar 50 anos, o Gato, assim apelidado por “grudar na prancha e sempre cair em pé”, continua disputando (e com frequência ganhando) campeonatos, agora no longboard e no stand up, sempre nas categorias principais. “Não gosto de ficar naquelas coisas de ‘senior’ ou ‘master’, gosto de encarar a garotada”, diz ele. Essa “garotada” tem nomes de respeito como Danilo Mulinha, Phil Rajzman, Jaime Viúdes, Amaro Matos, Rodrigo Sphaier e o próprio filho de Picuruta, Leco Salazar. Eles desenvolvem com os pranchões um surf extremo, que enterrou a imagem do longboard como um esporte de velho, mas já se acostumaram a apanhar do “mestre” nos campeonatos. Até quando? “Até quando Deus me der forças, e, além disso, os próprios moleques me querem lá. Se eu não vou aos eventos eles reclamam e mesmo nas baterias, que sempre quero vencer, eu os oriento, dou toques, explico onde podem melhorar. Acabo sendo um paizão.”

Não há, mesmo, nenhuma perspectiva de que Picuruta vá parar de competir tão cedo. Ele está em plena forma e, quando não der mais no longboard, se dedicará ao stand up, modalidade na qual pensa ainda ter bala para pelo menos uns bons dez anos. Não que não se sinta realizado por tudo o que já fez. É que não se sente nem um pouco pronto para se tornar “história”. O fotógrafo desta matéria quis fazer uns retratos dele em frente ao Museu do Surf de Santos, que fica no Quebra-mar, junto à escola de surf de Picuruta. Quando alguém que passava por ali soltou um comentário como “olha só o Picuruta entrando no museu”, ele saiu rapidinho, rindo e dizendo que não queria nem pensar nisso.

Não há, mesmo, nenhuma perspectiva de que Picuruta pare de competir tão cedo

Picuruta não ficou rico surfando, pois começou numa época em que as coisas eram bastante amadoras, e o patrocínio era escasso. Mesmo não podendo se dar ao luxo de pensar em parar de trabalhar, ele consegue viver apenas do surf, juntou um patrimônio razoável - uma casa em Santos e outra em Maresias, por exemplo - e se orgulha de ter chegado onde está hoje. Afinal, ele é um dos melhores exemplos da geração da virada, justamente aquela que abriu as portas para o profissionalismo atual, em que o surf deixou o status de marginal e se tornou um esporte respeitável, com presença constante na grande mídia, apoio de prefeituras e patrocínios fortes.

Carona no trem e campeonatos

O atleta nasceu numa família pobre no bairro de Marapé, junto a uma pedreira, em Santos. O pai, Alexandre, conhecido como Bigode, era motorista de caminhão de uma revendedora Chevrolet e fazia entregas no Brasil inteiro. Eram três irmãos: Lequinho, o mais velho, Almir e ele, caçula. Um belo dia Lequinho arrumou um longboard velho, “estilo Greg Noll, cheio de furos e que pesava uns 30 kg”, e começou a surfar no José Menino, em frente ao Canal 1. Era 1968, a revolução hippie e a contracultura incendiavam o planeta e Picuruta, aos 8 anos, aprendia a surfar no pranchão furado de Lequinho. Daí pra frente, os irmãos mais novos sempre pegavam a prancha: “oficialmente”, quando Lequinho emprestava, ou “discretamente”, quando o irmão não liberava. Como Picuruta era pequeno, ele ia ajoelhado na prancha, remando pelo canal até a praia, com Almir e os dois cachorros deles, a Wandeca e o Danúbio, fazendo a escolta pela rua. No caminho, aproveitavam para caçar as lagostas pretas que ainda existiam no canal, escondidas em pneus e sapatos velhos. Fora a questão de eventualmente “pegar emprestada” a prancha de Lequinho, os três irmãos eram muito unidos e sempre aprontavam juntos.

O pai viajava e, quando voltava, havia fila de vizinhos com reclamações dos filhos

O pai viajava e, quando voltava, havia fila de vizinhos com reclamações sobre os filhos do “seu Salazar”. Para ir surfar no Itararé, eles pegavam “carona” no trem rumo ao litoral sul e, numa curva perto do destino, quando a composição diminuía a velocidade, jogavam as pranchas e pulavam. Mas quando o maquinista inventava de não brecar nessa curva os garotos ficavam até a estação seguinte, o que podia ser só na bem distante Itanhaém. E aí a volta era, de novo, de carona em outro trem, para chegar em casa à noite. Passavam o dia na praia, comendo pão com açúcar, jambolão, banana, roubando sorvete em padaria, se virando. A escola, claro, ficou para trás.

Um dia seu Bigode chegou de viagem e chamou os três para uma conversa. Mandou que estudassem, mas ouviu uma resposta atravessada. “Então, o que vocês querem fazer da vida?” “A gente quer surfar.” “Então vão fazer isso direito.” Começou assim, nesse dia, sem que ele percebesse, a carreira de surfista profissional de Picuruta Salazar. Pois, a partir daí, surfar passou a ser obrigação, coisa para ser feita todos os dias, com sol ou chuva, com ondas ou sem. Quando o pai chegava em casa durante o dia e via os garotos bestando, mandava todos para a praia: “Vocês não queriam ser surfistas? Pois então vão! Não quero ver ninguém aqui!”.

Não que a turma da qual Picuruta fazia parte, a do Canal 1 de Santos, fosse tranquila. A reputação de encrenqueiros, com destaque para Lequinho, ultrapassava os limites da cidade. Tinham fama de marginais e parte deles era mesmo. Mas Picuruta e Almir, de alguma maneira, encontraram um caminho. Estavam começando os campeonatos um pouco mais estruturados, e os garotos iam se destacando.

Taiu Bueno, ex-campeão brasileiro e um dos mais refinados surfistas que o Brasil já teve, foi um dos que testemunharam o jovem Picuruta na água. “Eu o vi surfando pela primeira vez aqui nas Pitangueiras, acho que em 1976. Sua turma, uma galera do Quebra-mar, com pranchas bem menores do que as que se usavam na época, parou as bikes na areia das Pitangueiras e caiu no canal. Fiquei impressionado com sua velocidade, leveza e fluidez. Ele andava muito rápido e já dava batidas fortes nas junções. Depois disso, ele virou meu atleta preferido, uma referência no meu surf.”

Aprendeu a surfar aos 8 anos com a prancha que pegava escondido do irmão

O primeiro bom resultado de Picuruta já veio logo em 1972, vice-campeão santista. O pai passou a acompanhá-los, discutia com os juízes e, se os meninos iam bem, peregrinava pelas rádios e pelos jornais da baixada para tentar encaixar matérias sobre os filhos.

Entre meados da década de 70 e começo da de 80, os campeonatos no Brasil cresceram com os grandes festivais de surf, especialmente no Rio e em Ubatuba, com eventos como a série Waimea 5.000, sequência de mundiais ocorridos no Rio entre 1976 e 1982, para onde vinham todos os melhores gringos da época, como Cheyne Horan, Buzzy Kerbox, Randy Rarick e Michael Ho. Para enfrentá-los, Pepê Lopes, Rico de Souza e outros, quase todos cariocas – uma das exceções era Paulo Tendas, do Guarujá. Eis que de repente aparece na cena o desconhecido Picuruta, para dar trabalho e eliminar favoritos como Tom Curren, Cheyne Horan e Mark Occhilupo. O Brasil entrava no mapa do surf mundial, e São Paulo, com o Gato à frente, começava a desafiar o Rio como berçário nacional de surfistas.

Cueca e removedor

A molecagem, porém, não deixava Picuruta. Eram tempos de enorme localismo, as turmas de cada pico não davam moleza para visitantes, discussões e até pancadarias eram frequentes. Uma vez, depois de um campeonato, Picuruta e Almir pararam na praia do Félix, em Ubatuba, para acampar. O lugar ainda era praticamente deserto, e eles ficaram lá um mês surfando, pescando e comendo frutas. Num dia sem ondas, tiveram uma ideia “brilhante”. Arranjaram uma lata de tinta branca, se dependuraram no costão e pintaram, com letras garrafais, com mais de 1m de altura cada: “Picuruta e Almir, Quebra-mar – Canal 1 – Santos”. Logo depois, foram embora.

Foi com o irmão numa CG 125 até Ubatuba, e a estrada era puro barro

Quando chegaram a Santos, o Bigode já os esperava com uma carta enviada por Paulo Issa, o organizador dos festivais de Ubatuba: se os dois não voltassem lá para apagar aquele “serviço”, jamais poderiam pisar ou competir de novo em Ubatuba. Os locais de lá estavam furiosos. Almir não queria ir, mas Picuruta insistiu. Ele conta, naquele sotaque inconfundível de Santos, que junta o italianado dos paulistanos com o “s” chiado dos cariocas: “Porra, Almire, nóish temos que ir lá limpar aquela merda, meu irmão. Nóish não podemos ficar sem poder voltar pra Ubatuba”. Então subiram os dois numa Honda CG 125 que Picuruta havia ganhado num campeonato e foram, pelo que viria a ser a Rio-Santos, até Ubatuba. A estrada era quase toda de terra, não se usava capacete e chovia muito. “A gente ia pelo meio do barro matando mosquito com a testa.” Quando chegaram, com as cabeças doendo e as bundas quadradas depois da sofrida viagem, foram até o Félix na surdina, com medo de apanhar. Lá, munidos de removedor, foram fazer o trabalho e viram que tinham esquecido os pincéis. Um cabo de vassoura e a cueca de Almir resolveram o problema, apesar do mar, naquele dia com altas ondas, quase tê-los arrancado da costeira.

Cabeça de porco e futebol

No Havaí também tem história de Picuruta. Uma delas é a de uma famosa briga com os violentos locais “black trunks”, quando Picuruta, para defender Almir, nocauteou um havaiano com uma porretada, o que resultou na necessidade de escolta policial para a turma dele. Outra história fala de certo sarapatel à noite na praia, em que ele e os amigos espetaram a cabeça do porco que estavam comendo numa espécie de mastro e tiveram que dar muitas explicações à polícia, acusados de praticar rituais satânicos nas praias sagradas do North Shore.

Os três irmãos surfavam, mas Lequinho também jogava futebol. Chegou a ser profissional na Portuguesa Santista e foi chamado para o Fluminense. Mas, no dia do teste, o mar estava com altas ondas e ele faltou, encerrando assim sua breve carreira futebolística. No surf, Picuruta e Almir se destacavam cada vez mais. Em certo ponto, porém, Picuruta passou a ter mais resultados. Almir acabou indo morar na Europa e chegou a ser bicampeão português e vice-campeão europeu de surf. Se especializou no shape e hoje é dono da S-Pro, uma conceituada marca de prancha do Brasil. Lequinho, sempre mais “bad boy”, acabaria morrendo cedo, de Aids, um drama para a muito unida família Salazar. Gato até pensou em parar de surfar.

 

Família e piadas

Levado por Rico em 1981, conheceu o Havaí e de cara ganhou respeito em picos cascas-grossas como Sunset e Pipeline. Em seguida foi disputar etapas do circuito mundial na Califórnia e na África do Sul, enfrentando de igual para igual nomes lendários, como o bicampeão mundial Tom Carroll. Mas o dinheiro dos patrocínios não era suficiente para correr o tour, com escalas no mundo inteiro. O campeonato de 1985, por exemplo, teve 20 etapas, com passagens por Japão, Austrália, França, Inglaterra, África do Sul, Havaí e Estados Unidos.

Picuruta e seus amigos foram acusados de fazer rituais satânicos no Havaí

Muita gente que viu Picuruta competir na época afirma que ele tinha surf para brigar com chances reais de ser campeão mundial ou, no mínimo, figurar entre os primeiros. “Picuruta é excepcional, talvez o melhor surfista que o Brasil já teve. Se tivesse nascido em outra época, com outra estrutura, com certeza teria sido campeão mundial, pois, além de ótimo surfista, é excelente competidor”, fala Rico de Souza, hoje com 58 anos. Nosso personagem não se abala: “Fiz o que deu para fazer. Sei que ajudei a abrir as portas, no circuito mundial, para a geração de Teco Padaratz, Fabinho Gouveia, Victor Ribas e Guilherme Herdy, que vieram depois e que por sua vez asfaltaram o caminho para os garotos de hoje, como o Mineirinho e o Jadson”.

Picuruta não ficou rico, mas é um cara realizado. Ainda precisa dos patrocínios, que felizmente não faltam, e vive entre competições e a escolinha de surf, apoiada pela prefeitura de Santos. Um dos professores é o filho Leco, que, além de excepcional longboarder, talvez seja hoje o melhor brasileiro no stand up, que domina com uma fluência impressionante. Matheus, o filho mais novo, também compete e começa a ter resultados, e Caio, o mais velho, surfa apenas por prazer. A mulher, Karim, ajuda na administração da escolinha. Assim, a família inteira vive do surf.

Irônico e espirituoso, Picuruta gosta de mexer com todo mundo. Ele poderia tranquilamente apresentar um programa de humor no rádio ou na TV. Quando fazíamos as fotos, uma onda encharcou os tênis de Leandro, o motorista, que ajudava na iluminação. Picuruta não perdoou: “Ih, meu irmão, você foi comprar esse Nike no camelô da praça da Sé, agora até chegar em São Paulo já vai estar todo aberto...”. Quanto às piadas que ele fez comigo naquele dia, me reservo o direito de não registrá-las.

“Ajudei a abrir as portas para a geração do Teco Padaratz e do Fabinho Gouveia”

Moleque, surfista excepcional, pioneiro, guru. Mais do que tudo isso, porém, Picuruta é um cara que ama a família. Se alguém pergunta qual foi o título mais importante que ganhou, entre os 164 que tem, incluindo eventos mundiais, responde que foi em 1988, o Niasi - A Tribuna, etapa do Brasileiro em Santos, logo após a perda do irmão Lequinho, “que eu dediquei a ele”.

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