O urbanista que pretende transformar a vida de um milhão de pessoas em SP
Numa cidade com déficit habitacional de 130 mil moradias, Marcos Boldarini sonha com o dia em que seus projetos para áreas carentes (com direito a píer, quadras e até cinema ao ar livre) terão ajudado um milhão de pessoas.
O campo de grama sintética reúne dez peladeiros sob o sol forte da manhã de domingo. É mais um fim de semana no Cantinho do Céu, bairro da zona sul de São Paulo, mais de 30 quilômetros distante do centro, às margens da represa Billings.
A região tinha sérios problemas. O maior deles talvez fosse a questão do esgoto. Em volta da represa, as águas que vinham das casas ficavam expostas a céu aberto. Os moradores até cuidavam de suas fossas, mas a água que vinha do tanque, da pia ou do chuveiro inevitavelmente ia parar nas ruas. “Hoje tá bem melhor do que era.”
Entregue há três anos, o quilômetro e meio que virou parque municipal devido ao decreto número 53.380, do dia 24 de agosto deste ano, tem ainda outras duas quadras de areia, uma para futebol e outra para vôlei, estrutura para projeção de filmes ao ar livre, áreas adotadas como jardins e muito verde, mas nada disso faz tanto sucesso quanto o píer. É o ponto mais requisitado, ainda mais em dias quentes.
O atracadouro para embarcações, na prática, é onde crianças e jovens do bairro se divertem com saltos mortais e piruetas. Às vezes até funciona de fato como píer para barcos e lanchas. O responsável pela transformação local é o arquiteto Marcos Boldarini, figura central para as melhorias de bem-estar e lazer para 10 mil famílias do bairro, sem contar as pessoas que atravessam o reservatório de barco, ou a nado, para usufruir da infraestrutura construída. “Uma das minhas maiores alegrias aqui foi no dia que a mãe de um menino tetraplégico me disse que agora ela pode trazer o garoto para ver a água”, comenta Boldarini, que mal conhecia a região antes de iniciar o projeto.
Aos 38 anos, casado, sem filhos, ele enxerga ali um cantinho de paz em São Paulo. Fala com orgulho de seus feitos e projeta mais mudanças na vida das pessoas daquele bairro. “Eu quero colocar wi-fi livre. Já pensou?”, conta, ainda distante de concretizar a ideia.
“Uma das minhas maiores alegrias foi quando uma mãe me disse que agora pode levar seu filho tetraplégico para ver a água da represa”
Enquanto nos deslocamos de seu apartamento na Vila Mariana, Marcos aponta para uma malcuidada praça de Interlagos. “Este foi o meu primeiro trabalho”, diz. A área, tomada pelo mato e sem grandes arroubos arquitetônicos, foi o início de Boldarini na profissão, há quase 15 anos. Filho de um operário e de uma dona de casa que virou professora aos 40 anos, cresceu na Freguesia do Ó, bairro simples da região noroeste da capital. Estudou a vida toda numa escola estadual em frente a sua casa e, aos 16 anos, decidiu fazer faculdade de arquitetura. Cursou na Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, há mais de 60 quilômetros da capital, trajeto que ele percorria diariamente. “Eu era fascinado pelo fluxo da cidade, pelas mudanças de ritmo da noite para o dia. E descobri que poderia estudar isso com a faculdade de arquitetura e urbanismo.”
“Gisele Billings”
Chegando ao Cantinho do Céu, passa pela casa da sorridente dona Maria de Lourdes Oliveira Mendonça, que, aos 72 anos, fala com orgulho da plantação em frente a sua casa. “Essas árvores aqui foi tudo minhas mãozinhas que plantou.” Ela abraça o arquiteto, que pergunta como vão os filhos e Sofia, sua cachorra de estimação. “Sofia está lá no fundo. Está mais velha do que eu.” Ao ver a equipe de filmagem do TV Trip, a senhora faz troça. “Será que é alguma Gisele Billings?” Mãe de nove filhos, enviuvou logo que se mudou para o endereço. Tecnicamente, sua residência seria uma das removidas, mas nem a casa nem o plantio de dona Maria de Lourdes foram retirados. As árvores estão todas lá, verdes e fazendo sombra. Boldarini aponta para uma delas, praticamente no meio do caminho, e explica: “Nós modificamos o projeto aqui para poder manter esta árvore, por isso você vai andando e tem trechos mais estreitos”.
Esse é um dos exemplos de mudanças que precisam ser feitas em trabalhos desse tipo. No caso, especificamente, uma paralisação fez com que um trecho ainda não tenha sido finalizado. O motivo: duas famílias, localizadas bem no meio do parque, não entraram em acordo com a prefeitura inicialmente e fizeram com que a obra parasse. Quando a negociação se desenrolou, meses depois, o dinheiro inicial chegou ao fim. Conclusão: esse trecho será feito apenas na segunda fase, prevista para daqui a alguns meses. Para os moradores que precisam se retirar de seus lares, há duas saídas: receber o dinheiro pela indenização do imóvel ou o subsídio da prefeitura até a construção de um conjunto habitacional próximo.
Futebol e moicano
Esse é o maior trabalho da Boldarini Arquitetura e Urbanismo, que tem uma cartela com mais de 20 projetos entregues, em dezenas de municípios, a maioria deles em parceria com a prefeitura de São Paulo, passando pelas gestões de Celso Pitta, Marta Suplicy e José Serra/Gilberto Kassab. Até agora já tem um quilômetro e meio pronto, mas os planos são para mais de sete.
“Eu era fascinado pelo fluxo da cidade, pelas mudanças de ritmo da noite para o dia. e descobri que podia estudar isso”
Do outro lado do reservatório de água está começando a ser construída outra obra pensada por Boldarini. No bairro do Pabreu, há um plano de urbanização e habitação para mais 800 famílias. “O dia que eu atender 1 milhão de pessoas, dou uma festa”, brinca o arquiteto.
Em seu trabalho mais recente, um projeto de urbanização em quatro bairros do município de São Bernardo do Campo, tem feito assembleias com a comunidade para criar, acima de tudo, um local que assista as famílias que ali residem. As reuniões tem centenas de pessoas, que opinam e comentam sobre as melhorias locais. “Nem sempre nós conseguimos envolver a comunidade, mas a gente vem tentando incorporar isso na metodologia do nosso trabalho”, que tem como tripé os seguintes elementos: o que o grupo de Boldarini vê no local, o que a comunidade lhe diz e o que é preciso fazer.
O arquiteto tenta criar na aproximação com o bairro uma vida melhor para as pessoas. Um exemplo é o bairro de Silvina Audi, também em São Bernardo, com 437 novas habitações. Talvez o milhão não esteja tão longe assim.
Premiado em outubro deste ano com o projeto de urbanização de 15 mil metros no Jaguaré, na zona oeste paulistana, Boldarini deu um grande exemplo de transformação num local inóspito. Com desnível de 35 metros, teve que se desdobrar para pensar em saídas viáveis para um relevo tão íngrime. Conclusão: conseguiu fazer uma quadra poliespostiva, um centro comunitário e um projeto lúdico, colorido e bonito para a região. “Eu não acredito numa aceitação de 100%, porque esses pequenos descontentamentos te fazem refletir e melhorar o seu trabalho.”
Um sorveteiro passa pelo píer vagarosamente. Boldarini vai atrás e paga um real por um picolé, um pouco aguado, de milho-verde. “Isso é muito coisa de periferia, esses sorvetes de milho-verde e amendoim você só encontra assim”, comenta, com certa reverência. Na caminhada, passa em frente à estrutura preparada para o cinema. Dois arcos de cor laranja com sutis ganchos para a tela podem ser facilmente confundidos com uma escultura. Ali já foram projetadas duas sessões. Para que elas aconteçam é preciso apagar as luzes dos postes, fazer uma gambiarra para puxar a eletricidade de outro ponto e alugar um equipamento de som, o que dificulta que a prática seja costumeira.
Ao ser indagado sobre o quanto acha que transformou a vida dessas pessoas, Boldarini responde, quase sem raciocinar: “Às pessoas que me fazem esta pergunta, trago-as aqui para ver o que é este lugar hoje”. Boldarini fez com que famílias tivessem orgulho de seu bairro. “É importante chegarmos nas comunidades carentes, nas pessoas que talvez nem saibam mensurar o nosso trabalho. Os lugares não estão soltos no meio do nada. Eles têm um contexto, uma história e suas necessidades.”