O uso medicinal da cannabis abre uma nova linha de discussão no debate da legalização
Veneno é o que sai da boca do homem
Esse papo de chamar maconha de veneno é uma invenção do século 20. Mais precisamente de um tal de Harry Anslinger, chefe da repressão ao contrabando de álcool, na Lei Seca que rolou nos Estados Unidos da década de 1920. Quando Al Capone virou o que conhecemos, a proibição veio abaixo e o “senhor antidrogas” precisava de outra droga para chamar de coisa do diabo e justificar suas verbas.
Maconha pode fazer mal, é verdade. Ora, qualquer coisa pode fazer mal dependendo de como você se relaciona com ela. Não precisa ser o ‘veneno da lata’. Pode ser televisão, refrigerante, água, mulher – ou homem. Mas a maconha faz bem também.
Muito, mas muito antes de o tal Anslinger dizer que a marijuana era a ‘erva do diabo’, ela era famosa como remédio. Suas propriedades terapêuticas são conhecidas há pelo menos 4 mil anos na China. Há 2 mil anos isso já estava escrito em farmacopeias chinesas e egípcias. A Cannabis era antídoto para uma variedade de doenças, para as quais hoje a dita ‘ciência moderna’ reconhece sua eficácia.
Em março, lancei um curta-metragem chamado Ilegal, sobre a história de uma mãe guerreira que lutava para tratar a epilepsia da sua filha com canabidiol, uma substância extraída da maconha. A pequena Anny Fischer tinha 5 anos e pelo menos 60 convulsões por semana. Com uma gotinha diária do fitoterápico, ela zerou suas crises. Zerou!
A história do filme foi parar no Fantástico, emocionou o país e deixou todo mundo boquiaberto. “Ué, maconha pode ser remédio?” Sim, pode. E sabe desde quando médicos do Ocidente foram informados que certas variedades da planta podem tratar a epilepsia? Desde 1841, quando se publicou o primeiro estudo em inglês sobre o assunto. Pois é, passamos quase dois séculos fingindo que não sabíamos disso.
E ainda tem gente que diz que veneno é a maconha. Veneno, para mim, aquilo que nos mata e nos faz mal, é a ignorância e o preconceito com que a maioria das pessoas trata o assunto droga. O antídoto para isso já se conhece: informação.”
Tarso Araujo, 36 anos, jornalista, autor do Almanaque das drogas e codiretor do filme Ilegal
Bloqueio
“Vendo pela parte científica do negócio, o que está sendo usado medicinalmente hoje em dia é o CBD (o canabidiol), que não tem nada a ver com o poder alucinógeno do THC. Estamos falando de coisas diferentes. Existe uma planta que é medicinal e da qual você pode eliminar a parte alucinógena, usada como droga, e usar a parte medicinal.
Existem relatos de pais que fazem contrabando para trazer dos Estados Unidos medicamentos para os filhos e falam: ‘Sei que é contrabando, mas para salvar meu filho eu faço qualquer coisa’. Eu até mudaria para lá para salvar meu filho! Existe um tabu diante da droga. Mas é certo que a própria planta salva vidas. Como ser contra isso? Após conhecer o relato da família Fischer com a menina Anny, como não legalizar a maconha? Tudo depende de como ela é usada: maconha pode ser um veneno ou um medicamento. O efeito da maconha como droga é um, o efeito como medicamento é outro. Nós, atletas, somos exemplos, somos espelhos. As crianças se espelham na gente. Sou contra a utilização como droga. Em 2003 aconteceu, eu usei, sou um ser humano. Mas, se você perguntar pra mim, hoje, serei contra a droga. Como item medicinal eu sou completamente a favor.”
Giba, 36 anos, jogador de vôlei três vezes medalhista olímpico
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Droga versátil
“Qualquer remédio vendido na farmácia – até uma aspirina – pode envenenar, dependendo da dose e da sensibilidade da pessoa. O mesmo vale para a maconha. A maconha combate náusea e vômitos provocados pela quimioterapia em pacientes com câncer; reduz as dores e os espasmos musculares em pessoas que sofrem de esclerose muscular múltipla (doença degenerativa do sistema nervoso), desperta o apetite, proporcionando ganho de peso e melhora do estado nutricional em pacientes com câncer ou aids; diminui o glaucoma (doença causada pelo aumento da pressão intraocular que provoca lesões no nervo óptico e, com isso, compromete a visão) e ajuda no combate às convulsões em pacientes com epilepsia.”
Elisaldo Carlini, 83 anos, professor titular de psicofarmacologia da Unifesp, fundador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e membro do comitê de peritos da Organização Mundial da Saúde sobre álcool e drogas Droga versátil
Jogo jogado
“Cientificamente, a maconha medicinal é uma ajuda e não se pode ir contra isso. Mas eu não acho bom qualquer coisa que altere seu jeito de ser, seja álcool, maconha, cocaína. Acho que as pessoas têm de buscar algo dentro de si e acredito muito no esporte. Nele aprendi disciplina, amor- próprio, a lutar contra coisas difíceis. Concordo com a legalização da maconha, mas como maneira de eliminar o narcotráfico. Meu país, nos últimos anos, teve um aumento da criminalidade e acho que isso teve ligação com o comércio ilegal de maconha. Não gosto de hipocrisia. Se na praia tem gente fumando maconha, se na rua tem gente fumando maconha, se moralmente ela é legalizada, como seu uso ainda é crime? Devemos jogar o jogo com as cartas que estão na mesa.”
Sebastián Eguren, 33 anos, uruguaio e jogador do Palmeiras. Ele não fuma maconha, mas apoia a legalização ocorrida em seu país
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Uso regulado
“A máxima do Paracelso (pseudônimo de Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim) diz que veneno depende da dose, mas a maconha, curiosamente, é uma das poucas coisas de que não se pode dizer isso. Ela nunca é veneno, do ponto de vista literal. Nunca houve uma overdose de maconha na história. Acho que é a única droga psicoativa do mundo que nunca matou ninguém só pela sua toxidade. Então, chamar de veneno seria algo subjetivo. Remédio, é indiscutível que ela é, e um dos mais versáteis do mundo. A primeira vez em que ela é mencionada na literatura é em um compêndio medicinal chinês: 4 mil anos atrás, era usada como fármaco, calmante e analgésico. Muita gente ainda tem dificuldade de entender a maconha como remédio porque ela é muito ampla, serve pra muitas coisas – e a gente não se acostuma a ler um remédio dessa forma. Agora, é tão venenosa quanto qualquer coisa que o ser humano use de maneira tóxica”.
Bruno Torturra, 35 anos, jornalista, foi diretor de redação da Trip, foi ativista da Mídia Ninja e hoje atua em uma nova plataforma de jornalismo, o Fluxo
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Cabeça feita
“Desde a adolescência tenho fortes crises de enxaqueca e o veredito dos médicos era que não havia nenhuma formade tratamento realmente eficaz. Tentei diferentes tratamentos, alguns medicamentos até ajudaram por um tempo, mas quando parava de tomar os remédios as dores de cabeça voltavam até mais fortes, de modo que precisava ir a uma emergência de hospital tomar medicação injetável. Aos 20 comecei a fumar maconha. Após um ano eu percebi que não havia tido nenhuma crise – se tive, tinha sido muito fraca em relação às crises anteriores. Passei a procurar artigos médicos sobre o assunto e de fato a maconha pode realmente diminuir os sintomas da enxaqueca. Continuo usando até hoje, 20 anos depois.”
Lucio Maia, 43 anos, guitarrista das bandas Nação Zumbi e Zulumbi