Todo homem preso aprende que não se pode contar com a justiça
Estávamos no portão que separava o Pavilhão 4 do pavilhão 7 da extinta Casa de Detenção de SP. Alias, os dois únicos prédios que foram preservados. Os demais foram implodidos. Ficou parecendo processo de varrer a sujeira para debaixo do tapete e não revitalização espacial, como foi veiculado. O Pavilhão 9, sem dúvida, devia ser preservado pelo seu contexto histórico. Era um documento histórico sobre o célebre Massacre do Carandirú. Ali, 111 homens aprisionados foram assassinados por policiais militares, no início de 1992. E diga-se de passagem, até agora, 24 anos depois, ainda não tem (e temo que nem haverá) ninguém cumprindo pena pela gravíssima violação penal. Vários desses ‘policiais’ aposentaram, morreram ou nem mais policiais são. Parece que esta liberado exterminar pessoas presas. O Estado garante que não haverá punição. Pelo menos esse foi recado entendido.
Todo homem preso aprendeu, nesse ato de exceção, que não pode contar com justiça. ‘Eles’ podiam invadir, covardemente, atirando em pessoas desarmadas e indefesas, sob a custódia do Estado, que ficaria por isso mesmo. Não confia mais nas ‘autoridades’. Acompanha os noticiários e sabe da corrupção predominante no país. Sabe também que se erguer as mãos e se render, será inapelavelmente morto. A ideia de recuperação social é uma piada mal urdida. Como, se o preconceito impera e não há trabalho para o egresso?
Estávamos em 5 homens presos esperávamos nossos visitantes encostados no portão que separava os dois pavilhões e conversando. O presidiário vive para o dia das visitações. A tensão da espera cresce na medida que o dia vai passando e seus visitantes não chegam. Quando apontam lá no portão de entrada do pavilhão, a alegria é tamanha que nos engolofa. Ficamos sem palavras. Sentir que já respiramos o mesmo ar que respira uma pessoa amada, é algo que ultrapassa a capacidade humana de explicar.
De repente, nem sei quem surgiu com a conversa, mas, enfim era uma história interessante. Uma pessoa que conhecíamos havia brigado com a esposa no horário de visitações. Acabaram se agredindo mutuamente, indignados um com o outro. Ao termino do horario das visitas, ele seria chamado a se responsabilizar pelo susto nas crianças, nas visitas e pelos empurrões que acabou por trocar com a companheira. Caso não justificasse e não se explicasse muito bem, ele poderia ser linchado a pauladas. A família é sagrada para o homem aprisionado. Qualquer movimento em falso seria cobrado e por todos, sem perdão.
Para disfarsar a ansiedade febril que nos pegava, fiz uma pergunta a todos. As informações nos davam conta que, na briga daquele casal, a mulher havia, primeiro, dado um tapa na cara de seu companheiro preso. Caso exista atitude que mais agridam o homem do que um tapa na cara, não conheço. Todo homem compreende a reação violenta e intempestiva à um tapa no rosto. Fere sua dignidade, seu amor próprio.
Caso nossa companheira nos desse um tapa na cara e reagíssemos, é obvio que haveria um fator atenuante no julgamento. Tapa na cara era tapa na cara. Tabu. E era isso que discutíamos. Perguntei a cada um dos presentes: que atitude tomariam caso a companheira lhes aplicasse um tapa no rosto, na frente dos outros? As respostas foram obvias, dado o machismo predominante na cultura prisional. A explosão de violência seria instantânea.
As pessoas se enganam quando pensam que o sujeito preso perdoa tudo para continuar recebendo as pessoas que ama. Então perguntei para o único de nós ali que seguia um caminho religioso, mesmo dentro da prisão. Como ficaria sua cara, caso a parceira (conhecíamos: acompanhava o marido há anos) lhe desse um tapa? Ficamos ali, curiosos, esperando que caisse em contradição com as crenças que vivia a querer nos converter. Ele respondeu:
— Como ia ficar o que?
Ele estava ganhando tempo, visivelmente, não pensara ainda naquela possibilidade.
— Sua cara, é claro!
— Mas rapaz... Coçou a cabeça e pensou um átimo de segundo.
De repente, sentimos: havia decidido. Respondeu:
— Vai ficar vermelha!
O sujeito era humilde.
Cada um de nós ficou com vergonha do que pensou antes. Disfarçamos zombando sua ‘covardia’.
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Créditos
Imagem principal: Marko Lovrik