Os amigos e a liberdade

por Luiz Alberto Mendes

Sinto-me obrigado a fazer o melhor que puder. O meu compromisso é maior: preciso honrá-los mantendo-me livre e produtivo aqui fora

O homem é o que decide ser, como diriam os existencialistas. E eu decidi ser o melhor que puder fazer de mim. Claro, como qualquer ser humano, nem sempre consigo levar essa decisão ao pé da letra, mas faço o que posso —  e isso tem muito a ver com a relatividade dos valores e verdades com as quais sou bombardeado todas as horas do dia.

Claro, quase tudo me escapa. Como abarcar tudo em um só pensamento? Há como imaginar (que poderosa a imaginação, não é mesmo?). Porque imagem não tem dimensões determinadas. Domina o tempo e o espaço. Por isso grandes mestres, incompreendidos a seu tempo, enlouqueceram. Nietzche, Artaudt, Schopenhauer, Goia, Van Gogh, para falar de alguns dos conhecidos.  

Conheci, nesses mais de 30 anos de prisão, alguns sujeitos geniais. Convivi décadas com pessoas que sempre soube que eram muitas vezes mais inteligentes que eu. O pouquinho que sei eu devo, em grande parte, a eles, meus amigos presos.

O Gigante — media 1,60 m e meio, fazia questão de ressaltar — era um desses gênios. Quando um exemplar dos dois volumes da República, de Platão, teve a coragem de cair em nossas mãos, nós devoramos. Ou melhor, tentamos exaustivamente, embora sem muito sucesso. Ele foi o último a ler. Sabíamos que seria rápido, então metemos as caras antes. E quebramos.

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Assimilamos 20% a 40% em um mês de leitura, mais ou menos. Era terrível seguir o raciocínio encadeado de Sócrates, o personagem do livro. Pois o Gigante levou para a cela e, dois dias depois, estava dissertando sobre o assunto, querendo discutir com Sócrates e com o próprio Platão. O sujeito assimilou 100% em 48 horas, e estava indo além.

Henrique Moreno, amigo maior, na cela-forte, usando somente e papel higiênico e a grafite do lápis (lápis, caneta ou papel era proibido, se pegassem com você, era mais um mês de castigo), construiu um poema de 80 páginas. Sei, pode ser fácil. Mas ele não tinha nada para consultar, ler e escrevia clandestinamente. O poema Do Poeta à Lira foi todo construído em sextilhas rimadas com métrica rígida. Era absolutamente lindo. Uma história de amor hiper comovente —  digo "era" porque sumiu, nunca mais vi.

Pinduca era um amigo que a gente sempre achou que havia enlouquecido na prisão. Ele pintava. Copiava qualquer estilo, de qualquer época. E aprendera sozinho, lendo, estudando e experimentando. Construiu seu próprio estilo. Seus quadros eram únicos, falavam à alma da gente. Ele não precisava de papel, cadernos ou caneta. Pincel e tela lhe bastavam. Eu o vi produzir centenas de belos e criativos quadros. Vivia correndo atrás do que ele chamava de a pincelada perfeita. Aquele traço perfeito que comunicasse tudo o que ele quisesse dizer e que as pessoas percebessem à primeira batida dos olhos.

Muitos livros, objetos da mais refinada arte, artesanatos, quadros maravilhosos, nascidos da necessidade humana do belo e da arte, estão enterrados em lixões. Viraram escombros de revista prisionais. Os guardas jogavam tudo o que tínhamos fora, para nos humilhar e continuar a enganar a população, dizendo que nós éramos quais animais, impossíveis de sermos reconduzidos à sociedade. Isso justificava os maus-tratos, espancamentos e cela-forte. Eu mesmo perdi dezenas de cadernos de apontamentos, pensamentos, poesias, contos e até romances, que fui produzindo na minha longa caminhada pelas prisões. Quanta coisa boa se foi assim sem ninguém saber sequer que existiu...

Nem sempre podiam nos espancar, então eles espancavam nossos livros e objetos de arte. Ao preso era proibido o belo, mesmo que ele próprio o produzisse. Quanta coisa autenticamente artística, restos de arte transformados em lixo...

Meus amigos sumiram, foram mortos e há muitos anos. Sim, é insano. Sobreviveram por décadas na prisão, mas não conseguiram se manter vivos em liberdade. Nenhum deles durou mais que um ano fora da prisão, com toda essa inteligência e cultura. A voracidade de viver supera toda lucidez.

Por isso sinto-me obrigado a fazer o melhor que puder. O meu compromisso é maior: preciso honrá-los mantendo-me livre e produtivo aqui fora. Mostrar que, se eu que sou o menor e mais novo deles, posso me aproximar. Imaginem onde eles teriam chegado caso encontrassem os motivos para viver que eu encontrei.

Créditos

Imagem principal: Ilustração/Heitor Loureiro

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