Nós, brasileiros, carregamos lá no fundo da nossa alma a noção de que lucro é pecado
Enjoada, traiçoeira, delicada... Quando penso na palavra “lucro”, são adjetivos assim que me vêm à mente. Palavra que tenta viver na economia mas acaba arrastada para a moral e até para a teologia. Todo mundo tem alguma opinião, em geral forte, sobre essa palavra. E o problema, não se iludam, não é novo. Ele vem do berço. Em latim, lucrum, que significa ganho ou vantagem, deriva de logro, que significa roubo ou benefício obtido mediante engodo. A Igreja católica logo abraçou a causa e transformou aquele logro em pecado. Depois, quando, pelo menos no mundo anglo-saxão e protestante, a imagem do lucro começava a se recuperar, veio Karl Marx, que ressuscitou aquele pecado – agora não mais espiritual, mas material e, dizia ele, cientificamente fundamentado. Nós, brasileiros, somos herdeiros dessas duas correntes de pensamento (não por acaso, Igreja e esquerda no Brasil andam juntas já faz tempo) e carregamos lá no fundo da nossa alma a noção de que lucro é, mesmo, pecado.
E tudo que é pecado faz um mal enorme para qualquer discussão séria (não é assim com relação a aborto, uso da camisinha etc.?). Acho que é um pouco por isso que nós, brasileiros, costumamos ter uma relação complicada com as empresas (e elas, conosco). Uma empresa precisa lucrar, caso contrário ela não consegue prestar bons serviços ou entregar bons produtos e acaba falindo. Mas nós não gostamos muito que elas lucrem, pois isso soa como logro, então as empresas têm que disfarçar, mascarando o lucro ou vestindo-o com roupas sociais, nacionalistas ou ecológicas. Se você perguntar a um empresário norte-americano bem-sucedido como está a empresa dele, ele dirá: “Está ótima, pois faturou x e lucrou um monte por cento”. Quanto mais lucro, melhor. Num contexto similar, o brasileiro, meio constrangido, responderá: “Estamos lutando contra muitas dificuldades, mas é um bom negócio, pois geramos tantos mil empregos diretos, além de apoiar programas sociais e de preservação do meio ambiente”. Um tem orgulho do lucro, o outro fica envergonhado. Qual dos dois está certo? Essa discussão é longa e cheia de armadilhas. Apenas noto que no nosso caso o pecado está bem ali, na base da questão, e, como já disse, nenhum debate que tem o pecado como alicerce pode terminar bem.
Empresários doam pouco
Seguindo por essa trilha, será que não é por isso que muitos empresários brasileiros, já se sentindo pecadores por natureza, acabam tendendo a pecar mais ainda, e virá daí talvez um maior desrespeito às leis por aqui? Então estou dizendo com isso que os empresários americanos são bonzinhos e os brasileiros, uns capetas? Longe disso. E, em defesa dos nossos, vale dizer que o Estado brasileiro, talvez também contaminado pelo estigma do lucro pecador, trata nossos empresários muito mal: muita burocracia, infraestrutura cara e deficiente e, o mais grave, uma pesada e confusa carga tributária. Talvez seja por isso também que nossos empresários costumem falar muito, mas doar pouco para a sociedade. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde a filantropia pode não ser uma regra, mas é uma tradição que ajudou a construir muito do que aquele país tem de melhor, incluindo grandes universidades como Harvard e Yale, museus como o Metropolitan e o Guggenheim, institutos de pesquisa como o Smithsonian e uma longa lista de et ceteras.
Como um sincero anarquista de alma, penso realmente que é questionável se a vida numa sociedade baseada no lucro é a melhor coisa para os seres humanos e para o planeta. Por outro lado, já que vivemos de fato numa sociedade assim, e não consigo enxergar o dia em que poderemos – com 7 bilhões de bocas para alimentar – sobreviver plantando alface em idílicas comunidades autossustentáveis, acho que é melhor encarar a coisa. E, desculpem o trocadilho, é bom também arrumar um jeito de lucrar alguma coisa com isso, em vez de ficar o tempo todo tampando o sol com a peneira, praguejando e esconjurando o ditocujo.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br