O cineasta Henrique Goldman, autor de um documentário sobre suas antigas namoradas - e a maneira como cada uma via o mesmo homem -, conta uma história de amor ridícula
Sou um daqueles chatos melancólicos que relutam em esquecer o passado. No ano passado eu tive uma idéia imbecil: teimei em fazer um filme a respeito de mim mesmo, All The Girls I Loved Before, um documentário no qual entrevisto todas as mulheres que amei.
Essa idéia surgiu principalmente da minha vontade de me descobrir nos outros. Às vezes, olhando no espelho, não conseguimos entender muito bem o que somos. Por que a Roberta me deu um pé na bunda? Por que a Letícia me traía com o seu professor de taekwondo? Será que a Silvia sabia que eu tinha um caso com uma italiana que, por sua vez, corneava o marido comigo? Será que eu sou um bosta ou um tesão?
Consegui convencer o Channel 4 - rede de televisão britânica - a financiar o projeto que está rodando o mundo em vários festivais. O público adora. Mas, para mim, ficou insuportável rever este filme. Cada vez que assisto a ele é como se estivesse ingerindo meu próprio vômito.
Tive um caso bizarro cuja memória até hoje me faz rir, sentindo um misto de orgulho pela minha coragem e vergonha pela minha idiotice. Em 1996, fui a Angola fazer um filme para a TV local. A África portuguesa foi uma descoberta maravilhosa. Era uma terra estranha, mas por onde andava sentia cheiros que remetiam à minha infância, ao colo da minha babá. A comida, a língua e o senso de humor também me faziam sentir em casa, mais precisamente na área de serviço, no quarto da empregada. Mas sobretudo foram as bundas perfeitas e sassaricantes nas praias de Luanda que me transportaram a um Brasil recôndito e paradoxal, entre o familiar e o misterioso.
Musa acidental
Depois de uma estada de dois meses, era o meu último dia em Angola. Passeava de carro no centro de Luanda quando vi uma gata fenomenal no ponto de ônibus. Alta, magra, peitos e bunda que pedi a Deus, Nosso Senhor, dentes branquíssimos, cabelo trançadinho e olhos de jabuticaba. E ela sorriu para mim! Eu perguntei se ela queria uma carona. Ela disse que sim! Eu perguntei para onde ela ia. Ela respondeu: "Para onde você for!". Levei a Elsa para a casa onde estava hospedado e fomos direto para a cama. Foi tão legal - e a minha carência afetiva era tão grande - que depois de poucas horas juntos decidi convidá-la para vir para Londres viver comigo. Como num sonho, a princesa imediatamente aceitou o convite.
Voltei para Londres e comecei a me organizar para a sua chegada. Mandei uma passagem de ida e volta e, para que ela conseguisse um visto, matriculei-a num curso de inglês. A Elsa nasceu no meio da guerra e numa puta pobreza, e eu ficava imaginando seus olhos maravilhados descobrindo Londres. Nas duas semanas que antecederam a sua chegada, eu estava tão ansioso que não conseguia dormir. Mas, quando ela chegou, quase imediatamente o maravilhoso sonho angolano transformou-se num insuportável pesadelo.
A Elsa achava que eu era milionário - e para quem estava chegando de Angola até que eu era. Mas milionário eu nunca fui! Ela chegou a Londres literalmente só com a roupa do corpo, esperando que eu comprasse tudo que ela quisesse. Ela tinha 18 anos e eu, 35. Ao lado dela, me sentia como um vovô branquela e tarado, um desses velhos alemães que vão para o Rio fazer turismo sexual.
Eu nunca me senti particularmente branco, mas os homens pretos que me viam na rua abraçado com ela encaravam feio. Os meus amigos, principalmente minhas amigas, achavam aquela relação absurda, dizendo que se o lance não desse certo, ela ia acabar caindo na prostituição. E não tinha como dar certo: a Elsa não ia ao curso de inglês, não queria aprender a língua. Passava os dias dentro de casa com um shortinho superjusto, dançando pagode na frente do espelho.
Reencontro
Um dia ela disse que ia ao supermercado e desapareceu. Depois de horas, saí pelas ruas procurando-a como um desesperado. Não a encontrava em nenhum lugar e já estava desistindo da busca quando de repente vejo um enorme coelho de pelúcia descendo a rua na minha direção. E, por trás do gigantesco coelho, a Elsa, toda feliz por ter ganho o boneco num parquinho de diversões onde tinha gasto todo o dinheiro.
Não tínhamos nada em comum. Até a bunda dela perdeu a mágica hipnótica e começou a murchar como uma flor exótica que não se adapta ao clima. Com aquele coelho enorme no meu apartamento, o tesão dançou. Eu me sentia por um lado culpado, por outro usado.
A Elsa conheceu no metrô uma turma de angolanos e, para meu grande alívio, saiu de casa. Passaram-se meses sem que eu tivesse notícias dela. No inverno cinzento fiquei preocupado, fazendo votos de que ela estivesse se virando, feliz. Um dia chego em casa, e ela estava me esperando na porta. Completamente mudada, com o cabelo tingido, toda gata de novo, totalmente londrina. Tinha conseguido asilo político na Inglaterra e estava vivendo num apartamento cedido pelo governo. Estava trabalhando numa lanchonete e mandando dinheiro para os pais em Angola. Disse que queria ser minha amiga, e se desculpou, pois sabia que eu tinha me sentido usado. Passamos a tarde passeando num parque e depois disso ela sumiu para sempre.
Fiquei indeciso se devia ou não entrevistá-la para o meu filme. No fim decidi pelo não, pois nunca nos dissemos as essenciais palavras mágicas: "Eu te amo". Mas valeu a pena. Até para poder ficar aqui, depois de tantos anos, lembrando do quanto às vezes a vida é maravilhosamente ridícula.