por Décio Galina
Trip #170

Ídolos do motociclismo, eles achavam que só era possível ser livre sobre duas rodas

Paulé, Denísio e Tucano, ídolos do motociclismo nos anos 70, achavam que só era possível ser livre sobre duas rodas, em alta velocidade. A Trip foi atrás dos três para mostrar o que restou da paixão dos bons tempos e promover um reencontro nas pistas

Paulé, Tucano e Denísio. Moto, moto, moto – e mais nada. No início da década de 70, era assim: com esse trio não tinha papo-furado, o negócio era acelerar sobre duas rodas, ser o mais rápido, ousar nas manobras, ser livre não de forma teórica, mas na prática, na pista, no barro, na rua – mesmo que para isso fosse preciso morrer, como aconteceu com outro ídolo da época, Carlos Alberto Pavan, o Jacaré, que bateu as botas num racha na avenida Cidade Jardim, em 1975.

“Dormia motociclismo, respirava motociclismo, comia motociclismo”, explica Denísio Casarini, hoje empresário de 57 anos. “Moto não era só competição. Era a liberdade de ir para Santos no fim de semana, encontrar a turma na praia de Itararé, tomar sorvete, ver as mulheres...” Seu antigo parceiro nas pistas, Paulo Roberto Mesquita Salvalagio, o Paulé, que aos 58 anos ainda tem cinco motos 125 cc na casa onde mora em Carapicuíba, complementa: “Liberdade? Liberdade é andar de moto. Em cima da moto não esquento com nada, o nervosismo passa, esfrio a cabeça, saio sem dar satisfação. Não gosto nem de andar em grupo. Moto para mim é sair por aí, sozinho”.

A reverência a esse universo, no entanto, não reverbera no discurso de todos. “Não tirei nada do motociclismo. As pessoas apenas se aproveitaram de mim. Quando precisei de quem me dava tapinha nas costas, ninguém ajudou. Comi o pão que o diabo amassou. Sou revoltado com isso”, se exalta Walter “Tucano” Barchi, que começou a andar pilotando a Lambretta do irmão no bairro da Casa Verde e está prestes a completar 60 anos.

De volta às pistas

A reportagem da Trip convidou esses três ícones do motociclismo dos anos 70 para um reencontro nas pistas, no kartódromo Ayrton Senna, em São Paulo. Paulé topou na hora a idéia. Mostrou-se inclusive preparado para acelerar fundo motos modernas, de bastante potência. Denísio foi outro que aceitou o encontro, dizendo que poderia aparecer sem problemas com sua máquina atual: uma Kawasaki Drift 800.

Com Tucano, não houve acordo. Na primeira conversa, ele chegou a soltar que “mesmo com 60 anos, consigo, fácil, andar a 300 km/h” e que “a moto te proporciona uma liberdade de esquecer tudo sem perder os limites”. Nos contatos seguintes, a simples menção de que estávamos produzindo uma reportagem sobre motociclismo deixou Tucano, pai de três filhos, transtornado. “Não quero saber desse assunto. Nem perder tempo para fazer foto. Não posso vacilar e perder o meu emprego. Hoje em dia tenho que suar muito para juntar R$ 1 mil. Já estou preocupado em ter dinheiro para pagar o IPVA do ano que vem.”

Tucano gerencia quatro estacionamentos e manobra carros. “Eu queria mesmo é ter sido jogador de futebol. Nunca gostei de moto. Começaram a andar no bairro e entrei na onda. A primeira prova que ganhei foi sem querer: dos caras que estavam liderando um caiu, outro quebrou a moto, outro atropelou um cachorro...”, continua o ex-piloto, que calcula ter vencido mais de 70 corridas em 14 anos de competição – um cartel e tanto para quem diz nem gostar do esporte.

Irmãos de alma

Tucano foi um dos principais parceiros de pista de Denísio, de quem é amigo desde os tempos de autorama. A brincadeira de Denísio começou a ficar mais séria aos 12 anos: ganhou uma Leonette 50 do pai. Corta. A próxima cena mostra os dois chapas deixando a cúpula da Yamaha de olhos arregalados com o segundo lugar conquistado nas 500 Milhas de Interlagos, em 1971, a bordo de uma Ducati. A boa impressão resulta na contratação de ambos pela Yamaha. E logo nas 200 Milhas eles provam que o investimento valera a pena: Tucano vence sua categoria com uma TR2B 350 e Denísio leva a dele com uma DS7 250. A dupla faz história de novo com a vitória das 24 Horas de Interlagos de 1974 – com uma mera Yamaha TX 500, eles levaram a melhor batendo o recorde de voltas (336) e colocando 12 voltas no segundo colocado. “Ele é meu irmão de alma até hoje”, garante Denísio.

“Os dois eram profissionais”, lembra-se Ryo Harada, na época gerente de marketing da Yamaha, que os contratou pessoalmente para competirem pela marca. Paulé era outro que fazia sucesso entre o público que acampava em Interlagos para assistir às corridas, numa espécie de Woodstock embalada pelo ronco dos motores. Mas, apesar de muito talentoso, não despertava confiança nos chefes de equipe. “Ele andava sempre acima do limite. Para uma marca importa muito mais a imagem do piloto do que vencer a prova”, justifica Harada.

“Afinal, quem vai dar uma moto para um cara que bebe?” Ninguém contesta, porém, que Paulé era craque nas duas modalidades. “Ele corria tanto de motocross como de motovelocidade e era extremamente extrovertido: tinha cabelão, usava roupas velhas, macacão velho... Eram tempos muito doidos e não tinha como ser diferente. A gente fazia tudo por amor ao esporte, à motocicleta”, revela Wilson Yassuda, atual diretor de competições da Honda e vice-campeão brasileiro de motovelocidade na categoria 125 em 1973.

Tucano e Paulé também têm bons capítulos escritos a quatro mãos. Entre os mais memoráveis, a primeira participação brasileira nas 24 Horas de Le Mans de 1976, a 40ª edição da clássica prova francesa de Bol d’Or. Antes mesmo da largada, eles viraram notícia só pela coragem de competir com uma Honda 550, com roda raiada, no meio de máquinas que variavam entre 900 e 1.000 cilindradas. Depois da bandeirada de chegada, consagraram-se ainda mais: das 60 motos participantes, 25 completaram a prova, com Paulé e Tucano em 12º.

“Louco não, muito louco!”

Ao ter a idéia de promover o encontro entre os três, a Trip se mobilizou para achar Paulé, que Tucano não via havia mais de 20 anos e que se distanciou completamente de outros nomes do motociclismo. “Nossa... O Paulé é duro de encontrar, hein?!”, espantou-se Tucano quando abrimos os nossos planos. A última notícia que circulava nos bastidores é que ele estava trabalhando como motoboy, ganhando também algum dinheiro em apostas numa mesa de sinuca. Vasculha aqui, investiga ali e pegamos Paulé no Ted’s Bar, numa travessa da avenida Francisco Morato, Vila Sônia, São Paulo.

Ao lado da namorada, Selma Duarte (amor antigo, dos tempos de Interlagos, que reapareceu do nada, em uma dessas coincidências difíceis de explicar), e de garrafas de cerveja que insistem em ficar vazias, ele resume a vida desde os primeiros sete anos em Lucélia (no interior de São Paulo, onde nasceu) e logo fala da inveterada paixão pelas duas rodas. “Nem terminei o ginásio. Gostava mesmo era de moto, de kart, de acampar em Interlagos para ver as Mil Milhas. Não tinha moto própria, mas sempre pegava emprestada.” Procedimento igual ao do amigo inseparável Jacaré, que vivia fazendo barbaridades com máquinas alheias. Foi Paulé quem estava com Jacaré nos momentos que antecederam a morte do ídolo maior. “A gente ia fazer uma projeção de slides de motociclismo no Ibirapuera, mas o projetor precisava de pilhas e fomos comprar no Pandoro. Daí, o Jacaré ficou sabendo do cara que estava ganhando de todo mundo nos rachas. Arranjou uma moto emprestada e foi desafiá-lo. Jacaré perdia a disputa quando foi fechado por um carro e aí não teve como evitar o pior. Fui eu quem avisou a mãe dele da morte.”

Paulé começou a competir de moto em 1972, no motocross, e logo na estréia ficou em terceiro, numa prova vencida por Tucano, com Denísio em segundo. “Sábado corria motocross e domingo, velocidade.” Quando narra a vida profissional, as histórias são curtas. “Já fiz de tudo: de assistente cirúrgico na Santa Casa até entregador de jornal de Kombi, na madrugada. Mas fico de saco cheio rápido. Duro seis, sete meses no trabalho. No que mais fiquei foi no de comprador de peças de ar-condicionado de carro – tinha que ir pra vários lugares de moto, então trabalhei dois anos e meio. Faço bicos de motoboy, mas só quando é para algum amigo.” Ele conta que ganha dinheiro arrumando e revendendo motos velhas. Confirma que já descolou uma boa grana apostando na sinuca, mas hoje isso não passa de diversão. “Jogo é uma desgraça, difícil de parar, apostas sempre dobrando, quem perde quer recuperar e aí vai se complicando mais.”

Conhaque em Le Mans

Ao recordar o grande feito com Tucano em Le Mans, Paulé diz que durante as 24 h da prova bebeu, sozinho, 2 l de conhaque Napoleon. Então, você correu chapado? “Não, estava normal!” Mas você tinha o hábito de pilotar depois de beber muito? “Não, bebia todo dia, e alguns dias eu corria. Minha bebida predileta era rabo de galo, mas hoje só tomo cerveja... Quatro ou cinco... Em cada bar! Depois de beber cerveja que é hora de pegar a moto. A cabeça funciona a 300 km/h.” Você é louco, Paulé... “Louco, não, muito louco!” Paulé odeia se sentir preso, fechado, sufocado. Faz de tudo para não ter que andar de carro. “Não consigo parar quieto. Às vezes estou dentro de casa, sinto que preciso sair de moto e vou embora.” E, sem contar essa ligação profunda com motos, o que te deixa mais feliz na vida? “Ah, boceta, né!”

O ponto final na carreira esportiva de Paulé (campeão paulista e brasileiro em 1976) aconteceu em 1989, quando corria com uma Kawasaki. “Venci a última prova do campeonato em Interlagos e, para comemorar, dei uma volta pelo anel externo do autódromo depois da bandeirada. Estava feliz, ia buscar o troféu no pódio e me avisaram que tinha sido desclassificado por causa da volta pelo anel externo. Aquilo foi o fim para mim, uma tremenda sacanagem que me fez desistir de tudo.” A longa carreira nas pistas de motovelocidade e de motocross renderam fortes tombos e dezenas de ossos quebrados. “Nas ruas também abusava da velocidade e das manobras. Acho que tive umas 20 fraturas. Cada uma me deixava uns três meses de molho, com gesso.” Pai de Leandro e Milena e avô de Giovana, de 2 anos, Paulé confessa que atualmente está mais manso. “Hoje não tenho mais pressa.”

Hora da verdade

Embora mais sossegado, Paulé ficou alucinado com a possibilidade de voltar a acelerar em uma pista. O dia do encontro com Denísio no kartódromo Ayrton Senna começou com chuva forte. Denísio duvidou que realmente fossem se ver com um tempo daqueles. Paulé, não: saiu embaixo d’água e ainda ficou furioso quando se cogitou desmarcar a sessão – só se acalmou depois de uma cervejinha e a certeza de que os planos não se alterariam mais. Como um moleque, Denísio brincou de “quase atropelar” Paulé ao se encontrarem no kartódromo: freou a moto em cima do amigo de pista.

Na hora da verdade, Denísio poupou sua Kawasaki, pois as curvas fechadas faziam a pedaleira arrancar faíscas da pista. Já Paulé deu umas aceleradas fortes com sua Suzuki 125. Enquanto ele deslizava pela pista, a namorada, Selma, contava uma história das antigas: antes da largada das corridas, ela tomava um gole de uísque e, ao dar o beijo de boa sorte em Paulé, aproveitava para passar o líquido para a boca do piloto – mais romântico impossível.

Denísio falou muito sobre os negócios do filho, que vende quadriciclos e trabalha com marina de jet ski no Guarujá. Está com a vida ganha. “Meu filho já conquistou vários títulos no jet ski”, orgulha-se o pai. “Ele puxou a facilidade que tenho com moto e se especializou no jet ski, que nada mais é do que moto na água. Só que eu já caí tanto no asfalto que incentivei meu filho a acelerar na água – assim, não se machuca tanto nas quedas.”

Eles lamentaram a ausência de Tucano no kartódromo. Perceberam como três amigos com interesses em comum numa época podem se distanciar a ponto de parecerem pessoas quase desconhecidas décadas mais tarde. Foram cada um para um lado, sem nenhuma certeza de que se verão novamente nesta vida, cada vez mais longe das lembranças que transformavam liberdade e motociclismo em sinônimos.

fechar