Livre, sem rotina e realizado (Será?)

por Ricardo Calil
Trip #166

trabalho móvel, home office, co-working, open business... Mas isso tudo funciona?

Você está infeliz no seu trabalho? Se sente presoao escritório e à rotina? Algumas idéias, tecnologias e modelos de negócios tentam propor alternativas:trabalho móvel, home office, co-working, open business. Mas isso tudo funciona?

 

O trabalho enobrece e dignifica o homem. Afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade. Deus ajuda quem cedo madruga.

Você sabe que um conceito mudou quando os chavões sobre ele perdem o sentido. Se as frases acima fossem cunhadas no século 21, elas certamente ganhariam um tom cínico: o trabalho empobrece, entedia e vicia o homem. Acima de tudo, e aqui não há ironia e sim um fato, o trabalho gera enorme insatisfação para a absoluta maioria das pessoas.

No mais completo estudo sobre o mundo corporativo brasileiro, com 965 executivos entrevistados, a psicóloga mineira Betânia Tanure, autora do livro Sucesso e (in)felicidade e do artigo que sucede esta reportagem, chegou a uma série de dados alarmantes: 84% estão infelizes no trabalho, 76% acessam e-mail profissional fora do horário de trabalho, 58% acham que os cônjuges estão descontentes com o ritmo excessivo de trabalho deles, 54% estão insatisfeitos com o tempo dedicado à vida pessoal, 35% apontam problemas com o chefe como a crise mais marcante de suas vidas e assim por diante. E note que se trata de pesquisa com um grupo financeiramente privilegiado. Portanto, questões salariais e de sobrevivência - que figurariam entre as principais preocupações do resto da população - quase não entraram em questão.

Quais são as razões para tanta infelicidade? Para Jair Moggi, consultor da Adigo e coach dos mais requisitados do país, elas são muitas: exacerbação da competição em ambientes estressantes, a busca de resultados a curto prazo, o pouco tempo para a vida familiar. E, claro, as questões existenciais - em geral derivadas da troca da vocação original pelo conforto financeiro. "Essas questões variam muito com a idade. Aos 28 anos, depois de constatar que a realidade não é parecida com o que vimos na faculdade, costumamos nos perguntar: ‘Será que tenho vocação para isso?'. Por volta dos 34 anos, quando bate a crise de identidade, a pergunta em geral muda para: ‘A serviço de que ou de quem eu estou?'." Já para conhecer os sintomas da insatisfação profissional, não é preciso ser especialista: estresse, insônia, depressão e um variado cardápio de doenças.

 

ÓCULOS NOVOS

Até aqui foram as notícias deprimentes. A boa-nova é que há saídas. O trabalho está em crise, mas também em profunda mutação. O modelo antigo - décadas na mesma empresa, longas jornadas de trabalho, horários rígidos e escritório fixo - está em xeque. Os workaholics dos anos 80 e 90 continuam por aí, mas agora eles têm a companhia dos worklovers, pessoas que defendem que não há problemas em trabalhar muito, desde que sejam regidas pelo prazer, não pelo dinheiro. Aliás, a nova realidade gera um novo vocabulário, com muitos termos ainda não traduzidos ao português (open busi

ness, creative commons, co-working e hub) e algumas expressões auto-explicativas, como trabalho colaborativo ou trabalho móvel.

Para o economista Márcio Pochmann, presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), há mudanças fundamentais em curso nas relações de trabalho no Brasil. "A economia formal, a da carteira assinada, vem ganhando fôlego desde 2004, graças ao crescimento econômico. Com isso, diminui a velha informalidade, a da miséria e do atraso, do agricultor familiar e do vendedor de bala no farol", diz.  "Por outro lado, cresce uma nova informalidade, ligada a setores modernos da economia, com mais escolaridade e mais renda, do PJ [pessoa jurídica], do consultor, do autônomo, do cooperativado." Segundo ele, esses novos trabalhadores ainda não foram devidamente identificados pelas pesquisas. "Por exemplo, ainda não temos os instrumentais para avaliar a jornada de alguém que trabalha em casa. Ou que usa o celular e o computador para trabalhar da rua. Precisamos de óculos novos para enxergar uma nova realidade."

Diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ e fundador do Overmundo (www.overmundo.com.br), o colunista da Trip Ronaldo Lemos afirma que as novas tecnologias são a ponta de lança dessa transformação. "Antes tudo gravitava em torno de um escritório. Com a revolução tecnológica, ele pode ser apenas um ponto privilegiado de uma rede maior. Isso já está estabelecido nas indústrias da informação, da cultura e do conhecimento. As outras devem vir a seguir", diz. Para ele, a palavra de ordem do novo trabalho é colaboração. "Quanto mais contatos e mais informações você tem, maior é a eficiência, maior o lucro. A criação deixa de ser individual para se tornar coletiva."

Esse novo modelo de negócio, baseado em redes de livre circulação de informação, já tem nome ("open business") e base jurídica ("creative commons", o sistema de flexibilização dos direitos autorais). "O conceito de open business engloba tanto a decisão do New York Times de oferecer seu conteúdo de graça na internet quanto o esquema de distribuição da banda Calypso, que não tem gravadora, vende CDs por camelôs ou diretamente ao público de seus shows. Aliás, o tecnobrega paraense é analisado por Chris Anderson (autor de A cauda longa e editor-chefe da revista Wired) em seu novo livro. O open business une Silicon Valley à Brasilândia."

 

ALÉM DO COOL

O conceito de colaboração vem redefinindo inclusive o espaço físico do trabalho. Depois de se consolidar na Europa e nos Estados Unidos, o co-working - a divisão de um mesmo local por profissionais de diferentes áreas - começa a ganhar força no Brasil. Acostumado a trabalhar em lugares como a Livraria da Vila, o Franz Café e o Starbucks, o argentino Pablo Handl vai inaugurar em São Paulo em junho um espaço batizado como The Hub, que ele define como uma mistura de espaço de co-working, agência de inovação e incubadora de idéias. Por um preço que varia de acordo com o tempo de uso, o Hub irá oferecer a pessoas que querem trabalhar fora de casa ou de um escritório formal uma estrutura básica de serviços, como computadores, telefones, conexão à internet, salas de reunião e lounges com redes de balanço.

Mais do que o ambiente casual, a essência do Hub será a possibilidade de criar pontes entre pessoas de diferentes atividades, regiões e classes sociais. "Vamos promover o encontro do rapper da zona leste com o investidor do mercado financeiro, do designer com o governo. Queremos atrair empreendedores que tenham uma motivação ou um projeto que ative uma mudança positiva neste mundo", diz Handl. "Não é para ser só um lugar moderno. Como diz o Wellington Nogueira [do Doutores da Alegria], precisamos ir além do cool."

Com esse nível de organização, a iniciativa do Hub é pioneira no Brasil. Mas a idéia de colaboração e informalidade vem invadindo espaços mais tradicionais de trabalho. Recém-contratado pela agência de publicidade Santa Clara, instalada em uma casa de São Paulo, o diretor de arte Théo Rocha divide espaço em uma mesa com outros quatro departamentos, costuma levar seu laptop para perto da piscina quando está em busca de silêncio e tem horários flexíveis que lhe permitem fazer ioga duas vezes por semana. Vindo de uma grande multinacional, ele mudou-se para uma agência pequena em busca de um trabalho mais próximo de sua personalidade. "Não saí do meu último emprego por insatisfação, mas fui atrás de algo que combinasse mais com o que eu acredito. Sou uma pessoa multidisciplinar, e aqui quase não há divisão de tarefas. Todos podem interferir no trabalho dos outros - o que deixa as relações menos cheias de dedos. É mais caótico e menos impessoal. Mais coletivo e menos ego."

 

ÁGUA NO CHOPE

Entrevistado por Betania Tanure para a pesquisa que constatou a infelicidade dos executivos brasileiros, Eduardo Bom Angelo foi incluído no grupo minoritário dos profissionais satisfeitos; na época do estudo, ele era diretor-presidente da Brasilprev Seguros e Previdência. Mas isso não o impediu de tomar um rumo cada vez mais comum entre altos executivos: tornou-se consultor, além de membro de conselhos de administração. Trocou o escritório fixo pelo trabalho móvel: em sua casa, na da namorada, nas empresas onde presta consultoria. "Eu saí do outro emprego porque já tinha encerrado meu ciclo na empresa e tornei-me consultor para ter mais liberdade, flexibilidade, quali­dade de vida. É fundamental procurar um equilíbrio entre trabalho, sociabilidade, espiritualidade, família, atividade física", diz Bom Angelo. "A sustentabilidade não é só do meio ambiente. Ela se aplica à vida de cada um. O conceito é o mesmo: a atividade de hoje não pode prejudicar o recurso de amanhã. O workaholic, por exemplo, é não sustentável por definição."

Nem todos estão eufóricos com as mudanças nas relações de trabalho. Márcio Pochmann, do Ipea, enumera uma série de questões problemáticas na n ova realidade: ausência de um sistema de proteção social e trabalhista, altas jornadas de trabalho, novas doenças como as lesões por esforço repetitivo, insegurança com as oscilações de renda, perda do espaço de sociabilidade e assim por diante. "Nós estamos perdendo uma das grandes construções do século 20, que é a divisão entre o tempo de trabalho e o de não-trabalho. As pessoas ficam mais em casa, mas não necessariamente aproveitam o tempo com a família ou o lazer, porque estão disponíveis para o trabalho 24 horas por dia. Simbolicamente, estamos ficando parecidos com taxistas, que têm jornadas de 14 horas porque acham que estão perdendo dinheiro quando não trabalham", afirma. "Não quero dizer que só há aspectos negativos nessa nova realidade, mas que ela levanta questões que devem ser discutidas mais a fundo com urgência. A visão midiática, de curto prazo, glamoriza as novas tendências. Só que não podemos olhar só para a foto, mas para o filme todo."

 

"Nós estamos perdendo uma das grandes construções do século 20, que é a divisão entre o tempo de trabalho e o de não-trabalho."

 

 

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