Como o saber se multiplica em um ambiente criado para impedir a circulação de tudo?

Não existe comprovação genética ou biológica que permita afirmar que a violência faz parte da natureza humana. É possível dizer que ela um é fenômeno construído culturalmente. Violência pode e deve ser erradicada. Qual o antídoto? Educação, livro e cultura.

 

Depois de 31 anos e 10 meses de prisão (experiência retratada no livro Memórias de um sobrevivente) e atualmente professor de ofi cinas de escrita e literatura (portanto, uma prova dos benefícios da educação aos presos), fui escalado para tentar explicar como o saber se infiltra e se multiplica em um ambiente criado para impedir a circulação de tudo.

Para responder à questão, procurei em primeiro lugar José Adão Neres Jesus, gerente regional da Funap (Fundação Prof. Manoel Pedro Pimentel) na região de Sorocaba. Órgão vinculado à Secretaria dos Assuntos Penitenciários (SAP), a Funap é responsável pela implantação de programas de educação, trabalho e formação profissional nas unidades prisionais do Estado de São Paulo.

Na penitenciária Dr. Antonio de Souza Neto, Adão cita o educador Paulo Freire para responder à pergunta sobre a infiltração do saber em presídios. “Não sei se é possível educação na prisão. Mas o homem é o único ser capaz de encontrar saídas, mesmo nas piores circunstâncias.” Dali para a frente, ele começa a mostrar as saídas encontradas por esse homem aprisionado.

Adão afirma, com todas as letras, que o quadro de professores presos com os quais trabalha é muito superior, em termos de aplicação e comprometimento com a tarefa de educar, ao quadro de professores do Estado. E salienta: “E olha que eu sou professor do Estado!”. Segundo ele, os professores presos vivem uma cultura de edifi cação sem fi m. Estão sempre em preparação, sem permitir defasagens.

Dos 140.114 presos atendidos pela Secretaria de Assuntos Penitenciários, apenas 13.628 estavam nas escolas em maio de 2008

São 713 salas de aula espalhadas entre 112 unidades prisionais de São Paulo, divididas em:
277 Alfabetização
309 Ensino fundamental
127 Ensino médio

Os funcionários da Funap, como ele, são intermediários entre o mundo social e o mundo prisional. São eles que rompem as muralhas e trazem o livro, o conhecimento e a informação, para, junto com os professores presos, difundirem o saber. Perguntado sobre o porquê de tamanho esforço em ensinar o preso a encontrar seu papel de educador, ele respondeu com simplicidade: “Para tornar o ser humano mais digno”.

Durante a visita à penitenciária, conversei com vários homens aprisionados em uma sala de aula. Todos me impressionaram. Edson Aparecido Pinheiros nos relatou que havia parado de estudar, mas que ao chegar ao presídio se reaproximou da escola. Só então foi entender o sentido que havia nos estudos e nos livros. Paulo Freire afirmava que “quando a pessoa conhece os códigos de comunicação da sociedade, faz uma releitura do mundo”. Foi o que se deu com ele. Formou-se e tornou-se um dos mestres de maior expressão e comprometimento do quadro de professores presos daquela prisão. Como ele, há muitos outros. Fui um deles. Hoje ganho minha vida aqui fora com o que aprendi dando aulas na prisão. Ensinar tornou-se profissão, prazer e paixão.

Dos 13.628 presos matriculados nas escolas da Funap:
4.929 estão em curso de alfabetização
6.264 estão em curso de ensino fundamental
2.435 estão em curso de ensino médio

Wagner Pereira Caldas, formado em filosofia e professor desde antes da prisão, relata que, na avaliação do Enem, as escolas da prisão, em sua maioria com monitores presos, fi caram bem à frente da média das outras escolas. O terceiro lugar em redação, na classificação do Enem, saiu dessas escolas. O que demonstra, segundo ele, a excelência das escolas da prisão e principalmente do monitor preso como professor. E Wagner salientou um aspecto importante dessa avaliação: eles carecem de muita coisa que há nas outras escolas para dar aulas, como material didático e livros nas bibliotecas.

Os 626 professores/monitores ligados à Funap estão assim distribuídos:
49 em regime de CLT
50 estagiários
351 monitores presos
140 monitores culturais (presos)

Para finalizar, procurei saber de onde vem a coragem para estudar em ambiente tão depressivo e repressor como é a prisão. Ficou claro que eles acham que vem da própria natureza humana. O homem preso é o mesmo homem que está solto. A perda da liberdade não lhe roubou a humanidade. Continua com os mesmos atributos e capacidades com os quais nascemos todos nós. E desenvolver potenciais é uma das prioridades da condição humana.

O artigo 17 da lei 7.210 (Lei das Execuções Criminais) afirma que “A assistência educacional compreenderá instrução escolar e formação profissional do preso”

O artigo 18 é categórico: “O ensino de primeiro grau será obrigatório”

A escola na prisão é mais densa de significados. É também uma espécie de refúgio. A sala de aula é sempre um espaço mais livre onde se pode discutir e dialogar para além da cultura criminal que se estabelece nas prisões. Ali é possível respirar sem ter a pressão psicológica da convivência prisional e o pé na garganta institucional. É na escola que também estão os livros; os maiores amigos do homem preso. São eles que lhe alimentam a imaginação, o coração e o espírito de vida. Sou capaz de apostar que os livros das bibliotecas nas prisões são muitas vezes mais lidos que os das bibliotecas públicas. O tempo de duração de um livro na prisão é breve, logo ele vira, honrosamente, sucata e nem sempre é substituído.

Ao finalizar as entrevistas, conversei com o diretor-geral da prisão, Cássio Ribeiro de Campos, e percebi que a palavra de ordem naquela prisão é comprometimento. Para entender como o saber se infiltra na prisão, talvez seja essa a melhor resposta.

 

Pedras no caminho

Quatro questões que precisam ser enfrentadas para que a educação em presídios dê certo

1.Por mais absurdo que pareça, nas prisões do Estado as escolas não são oficiais. O preso, ao concluir o programa de alfabetização, não recebe certificado. Posteriormente, em exames supletivos, ele pode eliminar matérias do ensino fundamental e do médio e certificar-se. Faz parte da proposta do projeto Tecendo a Liberdade a oficialização das escolas dentro dos presídios.

2. Caso as escolas sejam oficializadas, o professor preso, formado pelo Programa de Formação de Monitores, o único que sabe lidar com essa clientela, será afastado das aulas. Os professores deverão ser oficialmente formados e contratados. Mas o que vão fazer esses professores formados dentro de uma prisão? Exigir algemas para os alunos, policiais armados nas salas de aula e o que mais?

3. De 140.114 pessoas aprisionadas atendidas pela Secretaria de Assuntos Penitenciários, nem 10% estavam na escola até maio deste ano. Em algumas unidades prisionais fala-se em grande demanda na escola e listas de espera para entrar. Por que tão pouca gente estudando? As vagas nas escolas não conseguem responder à demanda, pode ser uma delas. Outro motivo é o trabalho remunerado. O preso também tem filhos, esposa e dependentes. E tem que correr atrás de ajudar no orçamento familiar. Depois precisa se manter. Nada é de graça na prisão. Se for para a escola, não pode trabalhar porque escola e trabalho são no mesmo horário. Por questão de segurança, nos presídios não há movimentação de presos depois das 18h.

4. Na remissão de penas, a competição é desleal: três dias trabalhados equivalem a um dia a menos de prisão. Para cada 18 horas de aula, que podem se espalhar por vários dias, apenas um dia é remido na pena. Sempre o trabalho sendo privilegiado em relação à educação. É o mesmo drama do povo do interior do país: procurar trabalho em detrimento do estudo. A sobrevivência vem antes do aprendizado.

 

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