por Pedro Só
Trip #217

O berço da turma que procurava uma vida diferente para a juventude do final dos anos 50

O Arpoador, canto de pedras com ondas perfeitas colocado estrategicamente entre Ipanema e Copacabana, foi o esplêndido berço da turma que procurava uma vida diferente da traçada para a juventude no final dos anos cinquenta. Desse “laboratório de lifestyle” saíram não apenas boa parte dos contornos da cultura de praia carioca (e brasileira), mas percepções e insights fundamentais para a formação de um dos mais notáveis empresários do país – e, entre outras coisas, o homem mais rico do Brasil

Foi há 60 anos, mas ele descreve como se tivesse acontecido na semana passada. Arduíno Colasanti chegou ao canto esquerdo de Ipanema e viu um broto espetacular na água. “Ela estava descendo umas marolas de peito. Só havia nós dois na praia, e eu lhe ofereci minha tabuinha de pegar jacaré”, conta. Ela tinha 15 anos; ele, 16 – apenas cinco de Brasil. “Eu era muito italianinho ainda. Minha prancha tinha pintada a loba de Roma.” Filha da primeira mulher a usar maiô de duas peças no Brasil (a bela alemã Miriam Etz), a moça tinha puxado à mãe também no comportamento avançado. Seu pai, Hans, era um artista plástico boêmio, amigo de Paul Klee e Alexander Calder. Não demorou muito até que Ira (batizada Iracema) e Arduíno dessem as mãos pela primeira vez, em uma sessão de Scaramouche no cinema Metro, trocassem referências literárias avançadas para suas idades e daí engrenassem um namoro.

Cultos e belos, louríssimos, por três anos os dois formariam o mais admirado casal do Arpoador, naquela época o point preferido dos gringos e dos adeptos da pesca submarina. Entre 1955 e 1963, a mistura de estrangeiros de modos liberais e jovens esportistas com sede de contato com a natureza gerou, segundo a definição de Ruy Castro, “o grande laboratório de costumes da cidade”. Em crônica, Drummond arriscou definir assim o pedaço de areia: “É aquele lugar dentro da Guanabara e fora do mundo aonde não vamos quase nunca e onde desejaríamos (obscuramente) viver”.

“Havia na praia os grupinhos: o dos alemães, o dos franceses... Os brasileiros que não praticavam atividades esportivas tinham preguiça de andar até o Arpoador”, lembra Arduíno. Além da beleza das pedras, cenário onde o cronista João do Rio jurou ter visto Isadora Duncan dançar nua, em 1917 (“uma daquelas paisagens de Shelley em que a natureza parece findar-se no inebriamento espiritual de sua própria luxúria”), havia as ondas, muito melhores que as da vizinhança para a prática do jacaré.

Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista”

Arduíno pegava o bonde 11 do Jardim Botânico, onde morava, até o Bar 20, no lado oposto de Ipanema, e de lá tomava o Gal (tratamento popular dispensado ao general) Osório para saltar no ponto final, a cerca de um quilômetro da Pedra do Arpoador. O namoro com Ira lhe facilitou as atividades marítimas. “Ela morava ali perto, na rua Joaquim Nabuco, e eu guardava minhas tralhas de praia lá: a tábua de jacaré e o material de mergulho. Se tivesse onda, era jacaré. Se estivesse manso, mergulho e pesca.”

Preguiça e Bisão

A história do surf no Brasil registra que, em 1938, na praia do Gonzaga, em Santos, Osmar Gonçalves, Juá Haffers e Silvio Manzoni conseguiam ficar em pé numa prancha – que eles mesmos construíram. Thomas Rittscher, morto no ano passado, garantia ter feito isso antes, entre 1934 e 1936, lá mesmo, em Santos. Em 1947, na casa do mitológico Paulinho Preguiça (também falecido), pertinho do Arpoador, o engenheiro Luiz Carlos Vital – o Bisão – construiu, com ajuda de George Grande e outros amigos, uma prancha oca enorme, quatro metros, com tampa e tudo. As ondas eram pegas em dupla, com Bisão, mais pesado, sempre na popa. O apelido, DC-4, remetia ao modelo de avião que ajudou a popularizar os voos comerciais intercontinentais depois da Segunda Guerra. Mas estava longe de ser eficiente, como atesta o depoimento de Grande: “Tomamos tombos horríveis, até que um dia consegui ficar em pé. Foi um jacaré maravilhoso. Depois a onda estourou, nos embrulhamos e a DC-4 se espatifou”. Mais jovem que essa turma, Arduíno Colasanti conta que o primeiro que viu em pé sobre uma prancha foi Paulinho Preguiça. “Antes, só em revista.”

“Prancha” é uma licença poética: aquela tábua plana, sem quilha e quase quadrada era conhecida na praia como “porta de igreja”. “O Paulo descia do Pontão do Arpoador ajoelhado e, quando a onda dava aquela ‘meia enchida’, ele ficava em pé.” Os mais jovens ficaram impressionados e queriam fazer igual. Estava deflagrada uma corrida tecnológica por modelos que possibilitassem reproduzir a façanha daquele sujeito com profissão moderna: Paulo e ra operador de câmera de TV.

Arduíno, que anos depois faria carreira como ator, conseguiu ficar em pé antes dos outros. Mais uma para a conta do italiano, também pioneiro na caça submarina, acostumado a desbravar lajes e a pegar os maiores peixes. Mas Bisão aperfeiçoou a curvatura da proa das pranchas e agraciou os melhores “pegadores” de joelho da turma com seis modelos iguais. E uma nova geração chegou forte. “O Jorge era o mais habilidoso, o melhor de todos nós, disparado”, relata Arduíno.

O Jorge em questão é Jorge Paulo Lemann, um dos controladores da AB Inbev, o 36º homem mais rico do mundo, que no final de novembro ultrapassou Eike Batista no posto de mais rico do Brasil. Filho de suíços, Lemann morava no Leblon, em uma casa belíssima em frente ao canal da rua Visconde de Albuquerque. Segundo as memórias dos contemporâneos, era o único que tinha carro, um Ford cinza conversível. Aos 73 anos, o empresário gosta de recordar os tempos de praia, vividos entre 1959 e 1961, antes de trocar o Arpoador pela mais conceituada universidade americana.

Foi o que fez no ano passado, em São Paulo, na palestra “O que aprendi em Harvard”, ao citar que era “um dos melhores surfistas do Rio”. Lemann fez o elogio de assumir riscos de forma responsável, algo que a universidade raramente ensina. Confundindo as unidades de medida, contou sua experiência com ondas de “dez a 12 metros” (certamente dez a 12 pés, algo entre três metros e três metros e meio) numa ressaca em Copacabana. “Eram tão grandes que era impossível nadar por baixo delas. No final, encaixotavam. (...) Peguei a onda, senti o sangue todo correndo pros pés, a velocidade era muito maior do que a que estava acostumado. E consegui sair antes que encaixotasse. Meus colegas falaram: ‘Vamos voltar’. Eu disse: ‘Pra mim, chega’. Gostei de sentir aquele perigo mas não queria repetir. (...) Em vários momentos da carreira me lembrei daquela onda, me dava mais segurança do que tudo que aprendi na faculdade. Tomar riscos no esporte contribuiu muito para tudo que aconteceu na minha trajetória.”

(Nos anos 90, depois de muito tempo sem surfar, Lemann foi ao Havaí e não resistiu a alugar uma prancha. Foi castigado com uma queda que lhe fraturou a costela.)

“Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas”, disse Lemann. “Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou”

Lemann quase foi expulso de Harvard por comemorar o fim de seu primeiro ano letivo soltando cabeções de nego – de fabricação brasileira! No Rio, chegava a matar aulas em dias de mar excepcionalmente bom. Seu sonho de moleque era ser o maior tenista do mundo (foi pentacampeão brasileiro e jogou pela Suíça na Copa Davis de 1962), mas as ondas grandes o levavam para outra dimensão. “Era emocionante. Minha mãe às vezes tinha que me tirar do mar para me levar para um torneio de tênis”, revelou, em depoimento a um documentário (ainda inédito) sobre a história do surf no Brasil.

Com as pranchas inadequadas e pesadas da época, aconteciam acidentes: Lemann precisou costurar a testa e teve cortes nos dedos após algumas trombadas. Mas aprendeu no Arpoador lições que soube tornar valiosíssimas: “Só treinando, só praticando, só ousando você consegue as coisas. Pegar as maiores ondas possíveis, fazer as coisas mais difíceis... Tudo isso me ajudou a me tornar o empresário que eu sou”.

Outro surf

O talento de Lemann no mar foi testemunhado por poucos. Quando voltou ao Brasil, o surf já era outro. Irencyr Beltrão, o Barriguinha, descobriu na ilha do Governador um carpinteiro que fabricava lanchinhas voadeiras com um compensado naval resistente à água do mar. Com isso, veio a era da madeirite, com pranchas mais adequadas e novos surfistas. Jorge Bally, o Jorge Perseguição, ou simplesmente Persegue, foi o sucessor de Lemann entre os jovens talentos do Arpoador.

Ele conta que os mais velhos não diziam onde fabricavam seus cobiçados modelos. “Era tudo enrustido.” Mas Arduíno, que inicialmente trabalhava sozinho e não estava associado a Barriguinha nas invenções, acabou socializando o segredo. Em parceria com Persegue, aperfeiçoou as madeirites, graças aos ensinamentos de um velho exemplar da revista americana Popular Mechanics que o pai do jovem possuía.

Nesse tempo todo, a “paisagem lunar” descrita por João do Rio continuou culturalmente fervendo. Roberto Menescal, da turma da caça submarina, ajudava a colocar a bossa nova em alto-mar. Em 1959, quando a revista Manchete quis dar uma capa com João Gilberto, fotografado nas pedras do Arpoador, o editor Justino Martins achou por bem garantir as vendas colocando no quadro, muito maior, a musa do pedaço: Ira Etz, a essa altura, com 22 anos, tão emancipada e antenada (vivera em Nova York, no Greenwich Village dos beatniks, depois do fim do namoro com Arduíno) quanto linda.

Quando a revista “Manchete” quis dar uma capa com João Gilberto em 1959, achou por bem garantir as vendas colocando no quadro a musa do arpoador, Ira Etz, emancipada e antenada

Os pais de muitas moças eram estrangeiros e seus costumes, liberais. Elas podiam usar biquínis menores (avistados por ali desde 1951, antes do resto do país), viajar com namorado e até pegar onda. Como resume Arduíno: “As meninas começaram a dar. Acabou a coisa de os rapazes terem de ir à zona. A convivência entre os sexos ficou mais natural.”

Ver aqueles brotos descendo as ondas era “a coisa mais linda”, derrete-se ele. Uma das pioneiras, Maria Helena Beltrão, foi fisgada por Barriguinha, com quem se casou aos 18. Fernanda Guerra fazia judô e natação, sempre com o incentivo do pai, Walter, e da mãe, que era americana. Ela lembra daquele tempo como um privilégio. “Éramos umas 40 pessoas, todo mundo amigo. Um usando a prancha do outro. A gente saía da água e tinha uma fila esperando.”

Até dois anos antes, a meta de quem pegava onda no Arpoador era ficar em pé na prancha e ir o mais longe possível na diagonal. “O suprassumo era chegar no edifício da esquina da Francisco Otaviano, mas isso era alcançado poucas vezes.”

Em 1964, veio a revolução: um australiano chamado Peter Troy chegou da Amazônia peruana disposto a explorar as ondas brasileiras, mas combalido por amebíase. Foi acolhido por Barriguinha, cujo pai era médico. Quando o gringo ficou bom, Arduíno tinha acabado de fazer um bem-sucedido modelo de longboard (mais de três metros) usando resina epóxi, que não corroía o isopor dos moldes. Como o mar no Arpoador não estava bom, levaram Troy até um selvagem Recreio dos Bandeirantes, a 35 quilômetros dali. “Ele pegou duas ondas. Andou em cima da prancha. Fez um hang five com a perninha esticada. Depois deu um bottom turn, mas tão cavado que arrancou o fundo da prancha.”

Quando aquele garoto australiano entrou no mar com uma prancha de fibra de vidro foi um choque para os brasileiros. “Ele mostrou coisas que nós nem sabíamos que podiam ser feitas”, lembra Arduíno Colasanti

Boquiaberto, Arduíno não ficou chateado com a “morte” de seu modelo. Ele e todos os amigos que estavam de plateia encararam como uma aula, repetida em escala muito maior no Arpoador, com uma prancha americana Bing de fibra de vidro emprestada por um adolescente americano chamado Russell Coffin, filho de um executivo da Coca-Cola que anos depois viria a se tornar fabricante de blocos de poliuretano para pranchas de surf. “O queixo da gente caiu. Ele mostrou um monte de coisas que não sabíamos que podiam ser feitas.”

Troy surfou poucas vezes no Rio antes de seguir a vida de viajante, três meses após a chegada. Soul surfer da mais pura essência, pegou ondas em 140 países, desbravando picos míticos como Nias, na Indonésia. Retornaria ao Brasil em 1981 e 2002, sem cair novamente no palco inaugural do surf no Brasil. Em 2008, aos 59 anos, morreu, com um coágulo no pulmão.

Sua passagem em 1964 foi um divisor de águas brutal. “Muita gente deixou de surfar com a passagem da madeirite para a fibra. Foi uma mudança da água pro vinho”, conta o veterano Armando Serra, 63 anos. A partir daí, começaram a aparecer mais e mais americanos e pranchas importadas no cantinho de Ipanema. Com eles, pouco depois, a maconha. “É surpreendente, porque poderia ter vindo dos morros, ali do lado. Mas veio com eles.
A princípio foi combatida, mas foi ficando... mais aceita. E passou a ser até um gesto revolucionário”, revela Arduíno, adiantando o relógio até 1968.

Modesto, ele diz que teve muito reconhecimento para “pouca produção” e faz questão de desmitificar a condição histórica de primeiro campeão de surf no país. “O torneio que tínhamos combinado era de pesca, com um churrasco marcado para depois. Mas o mar estava de ressaca, e fomos direto pro churrasco. Lá, tomamos caipirinhas e chegamos à conclusão de que, se tinha onda, o campeonato deveria ser de surf. Viemos pro Arpoador com aquelas meninas todas – porque era uma festa . O vencedor era definido por aclamação do público, e eu ganhei só porque peguei mais ondas. E porque o Jorge Americano (ou seja, Jorge Paulo Lemann) não estava. E porque a minha namorada, a Ira, era meio ‘chefeta’ da praia, levou umas amigas e comandou a torcida por mim.”

Um orgulho, porém, ninguém tira de Arduíno Colasanti: “Eu era o melhor pescador do Arpoador. Sempre fui”.

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