Nosso colunista conta a experiência de ler para mais de 100 crianças no projeto Brincar de Ler do Instituto Ecofuturo
POR LUIZ ALBERTO MENDES* ILUSTRAÇÃO CIRILO DIAS
Hoje, domingo, dia 12 de outubro, lá fui eu para o Jardim Panorama, carregando pesada mala com 30 livros infantis, os que citei na primeira parte. Iria ler e oferecê-los para as crianças da Associação de Moradores do Jardim Panorama, dentro do projeto Brincar de Ler do Instituto Ecofuturo.
Não sabia o que me aguardava. Já haviam me falado que era favela. Isso já me agradou porque estou inteiramente consciente de que é esse povo que mais necessita do que eu tenho a oferecer. Estava preparado para animar atividades de forma amistosa, mas focado nos livros. Possuía algumas estratégias aprendidas na oficina de que participara e outras de minha experiência com crianças em minhas Oficinas de Leitura e Escrita. Mas sabia que aquilo se resolveria na hora. Com criança é sempre assim: as coisas se resolvem na hora. Na hora que eles querem, evidentemente.
Subi e desci uma viela estreita que parecia ser a rua central da favela. Pobreza para todos os lados; muitos barracos de madeira, alguns meio que improvisados ainda. O povo olhava curioso, eu suando com aquela mala amarela nas costas. Não saberia explicar por que, mas é nesses lugares que me sinto mais seguro e tranqüilo. A simplicidade daquelas senhoras sentadas à porta dos barracos, tricotando ou descascando batata. Os homens na porta dos botecos tomando cerveja ou pinga mesmo, alegres. Faltava o que sempre mais vi nas favelas: crianças. Talvez já estivessem me esperando na Associação. Apertei o passo e sentia a mala bater na coluna; parecia cada vez mais pesada.
A associação estava fechada. Fui informado de que o povo dali estava na rua asfaltada. Andar mais na mesma viela. Estava começando a ficar cansado, quando encontrei a festa. Em plena rua fechada, jovens e senhoras organizavam crianças em filas para as brincadeiras. Muita criança, muita.
Apresentado aos organizadores, nem precisou conversar muito, nos entendemos fácil. Já dominei o cilindro de gás para encher bexigas e criei uma função para mim, enquanto esperava minha vez. Enchi bexigas até acabar o gás. As crianças foram colocadas em fila pelas senhoras e fomos, fechando a fila, para a associação. Estimávamos cerca de no máximo 30 crianças para fazer a animação e a leitura. Quando parei para contar, havia mais de 100. E todas inquietas, excitadas pelas brincadeiras e proximidades. Pedi silêncio e minha voz se perdeu naquele tumulto. Quis pensar, não deu. Nada ali combinava com o treinamento que recebera. Segui instintos.
Peguei os livros e fui distribuindo. Eles pulavam pra cima, queriam pegar qual fosse leilão. Esclareci: era para devolver. A insatisfação foi generalizada. De repente percebi meu erro: como distribuir 30 para mais de 100, não sendo eu santo nem anjo? Mas, se a matemática não funcionava, as coisas se resolveram magicamente. Os livros foram “andando” de mão em mão até chegar ao fundo, sem ninguém pedir nada, espontaneamente.
E agora, como conseguir ler, conversar sobre livros com a atenção deles voltada para os livros? “Ah!”, pensei, “mas como sou burro!” Não precisava, os livros já estavam nas mãos deles e se autodivulgavam com suas cores vivas e figuras chamativas. Quando me deram chance, engoli minhas palavras e peguei-os pelos olhos, com os trunfos que guardava na mala. Quatro livros que eu havia estudado e até lido para meus filhos. Não sou bobo, não é?
O Sapo Bocarrão, Cachorrinho e seus amigos, Oh! e Não confunda. Quando terminei de ler Oh! (que, sem dúvida é o que mais chama a atenção), eles vieram para cima, como meus filhos. Queriam ler o livro com o tato, assim de pertinho para saber que era de verdade mesmo. No fim de minha apresentação, as mais de 100 crianças estavam trepidando. Eu havia cumprido minha missão.
Mesmo depois de terminada minha parte no trabalho, resolvi ficar. Fui me envolver na Oficina de Massinha de uma colega. Formamos uma roda enorme no meio da rua, fiquei na produção; desembalando e distribuindo massinhas. Depois comecei a aprender com as menininhas e construí um monte de coisinhas com elas.
Engraçado como elas representam a família harmoniosa que querem ter no que esculpem. Sempre o pai, a mãe e os filhinhos. Tem até cão e gato na parada. A noite caía mansa quando saí andando pela marginal até o ponto de ônibus, imerso no silêncio noturno. As crianças gritando ainda afogavam meus ouvidos. Aqueles bracinhos como cápsulas quentes pareciam me envolver num querer bem tão puro e profundo na despedida... Aperto na garganta, quase um soluço. Cheguei ao ponto junto com o ônibus. Enxuguei o rosto e voltei para casa. Meus filhos não estavam, haviam ido ao shopping com a mãe deles. Carecia tanto dividir com eles...
Acho que agora vou conseguir dormir. Estou até abrindo a boca. Sabia que tinha que socializar era muita coisa para agüentar sozinho.
*LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, passou 31 anos e 10 meses na prisão e está mais preparado para o fi m do mundo que a maioria de nós. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br
Hoje, domingo, dia 12 de outubro, lá fui eu para o Jardim Panorama, carregando pesada mala com 30 livros infantis, os que citei na primeira parte. Iria ler e oferecê-los para as crianças da Associação de Moradores do Jardim Panorama, dentro do projeto Brincar de Ler do Instituto Ecofuturo.
Não sabia o que me aguardava. Já haviam me falado que era favela. Isso já me agradou porque estou inteiramente consciente de que é esse povo que mais necessita do que eu tenho a oferecer. Estava preparado para animar atividades de forma amistosa, mas focado nos livros. Possuía algumas estratégias aprendidas na oficina de que participara e outras de minha experiência com crianças em minhas Oficinas de Leitura e Escrita. Mas sabia que aquilo se resolveria na hora. Com criança é sempre assim: as coisas se resolvem na hora. Na hora que eles querem, evidentemente.
Subi e desci uma viela estreita que parecia ser a rua central da favela. Pobreza para todos os lados; muitos barracos de madeira, alguns meio que improvisados ainda. O povo olhava curioso, eu suando com aquela mala amarela nas costas. Não saberia explicar por que, mas é nesses lugares que me sinto mais seguro e tranqüilo. A simplicidade daquelas senhoras sentadas à porta dos barracos, tricotando ou descascando batata. Os homens na porta dos botecos tomando cerveja ou pinga mesmo, alegres. Faltava o que sempre mais vi nas favelas: crianças. Talvez já estivessem me esperando na Associação. Apertei o passo e sentia a mala bater na coluna; parecia cada vez mais pesada.
A associação estava fechada. Fui informado de que o povo dali estava na rua asfaltada. Andar mais na mesma viela. Estava começando a ficar cansado, quando encontrei a festa. Em plena rua fechada, jovens e senhoras organizavam crianças em filas para as brincadeiras. Muita criança, muita.
Apresentado aos organizadores, nem precisou conversar muito, nos entendemos fácil. Já dominei o cilindro de gás para encher bexigas e criei uma função para mim, enquanto esperava minha vez. Enchi bexigas até acabar o gás. As crianças foram colocadas em fila pelas senhoras e fomos, fechando a fila, para a associação. Estimávamos cerca de no máximo 30 crianças para fazer a animação e a leitura. Quando parei para contar, havia mais de 100. E todas inquietas, excitadas pelas brincadeiras e proximidades. Pedi silêncio e minha voz se perdeu naquele tumulto. Quis pensar, não deu. Nada ali combinava com o treinamento que recebera. Segui instintos.
Peguei os livros e fui distribuindo. Eles pulavam pra cima, queriam pegar qual fosse leilão. Esclareci: era para devolver. A insatisfação foi generalizada. De repente percebi meu erro: como distribuir 30 para mais de 100, não sendo eu santo nem anjo? Mas, se a matemática não funcionava, as coisas se resolveram magicamente. Os livros foram “andando” de mão em mão até chegar ao fundo, sem ninguém pedir nada, espontaneamente.
E agora, como conseguir ler, conversar sobre livros com a atenção deles voltada para os livros? “Ah!”, pensei, “mas como sou burro!” Não precisava, os livros já estavam nas mãos deles e se autodivulgavam com suas cores vivas e figuras chamativas. Quando me deram chance, engoli minhas palavras e peguei-os pelos olhos, com os trunfos que guardava na mala. Quatro livros que eu havia estudado e até lido para meus filhos. Não sou bobo, não é?
O Sapo Bocarrão, Cachorrinho e seus amigos, Oh! e Não confunda. Quando terminei de ler Oh! (que, sem dúvida é o que mais chama a atenção), eles vieram para cima, como meus filhos. Queriam ler o livro com o tato, assim de pertinho para saber que era de verdade mesmo. No fim de minha apresentação, as mais de 100 crianças estavam trepidando. Eu havia cumprido minha missão.
Mesmo depois de terminada minha parte no trabalho, resolvi ficar. Fui me envolver na Oficina de Massinha de uma colega. Formamos uma roda enorme no meio da rua, fiquei na produção; desembalando e distribuindo massinhas. Depois comecei a aprender com as menininhas e construí um monte de coisinhas com elas.
Engraçado como elas representam a família harmoniosa que querem ter no que esculpem. Sempre o pai, a mãe e os filhinhos. Tem até cão e gato na parada. A noite caía mansa quando saí andando pela marginal até o ponto de ônibus, imerso no silêncio noturno. As crianças gritando ainda afogavam meus ouvidos. Aqueles bracinhos como cápsulas quentes pareciam me envolver num querer bem tão puro e profundo na despedida... Aperto na garganta, quase um soluço. Cheguei ao ponto junto com o ônibus. Enxuguei o rosto e voltei para casa. Meus filhos não estavam, haviam ido ao shopping com a mãe deles. Carecia tanto dividir com eles...
Acho que agora vou conseguir dormir. Estou até abrindo a boca. Sabia que tinha que socializar era muita coisa para agüentar sozinho.
*LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, passou 31 anos e 10 meses na prisão e está mais preparado para o fi m do mundo que a maioria de nós. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br